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ABORDAGEM DA DOR MECÂNICA NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE

Autor: Marcos Paulo Veloso Correia
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Introdução

Uma dor persistente restringirá as atividades de vida diária (AVDatividades de vida diária), de lazer e profissionais, bem como qualquer intervenção paralela de proteção ou promoção da saúde, até que lhe tenha sido dada uma resposta eficaz.

Dor crônica é um tema intrinsecamente relacionado à medicina de família e comunidade, uma vez que

  • a baixa correlação clinicorradiológica exige um raciocínio de forte base semiológica e que possa ser compartilhado com o paciente, de modo a evitar inseguranças, equívocos e mau uso de recursos;
  • o tratamento da dor crônica – aquela persistente para além do tempo de cura normal do tecido –1 é particularmente complexo, ao exigir participação ativa do paciente e de seus familiares (com vínculo e competência cultural, muitas vezes domiciliarmente) e trabalho interdisciplinar (a demanda por especialistas relacionados à área é sempre muito maior do que a oferta, e a coordenação do cuidado é prejudicada pela ausência de uma cultura bem estabelecida de interdisciplinaridade).

Não por acaso, a importância da atenção primária à saúde (APSatenção primária à saúde) como polo de tratamento de dor crônica é reconhecida pelo Projeto Brasil sem Dor,2 pelo consenso em dor crônica não oncológica do Instituto pela Melhoria de Sistemas Clínicos (ICSIInstituto pela Melhoria de Sistemas Clínicos, do inglês Institute for Clinical Systems Improvement)3 e pelo documento definidor de escopo do futuro consenso em dor crônica não oncológica da Organização Mundial de Saúde (OMSOrganização Mundial de Saúde).4

A dor musculoesquelética tem, nesse contexto, um duplo destaque. Por um lado, destaca-se pela sua relevância tanto para idosos quanto para adultos jovens. Na Europa, problemas musculoesqueléticos são o segundo principal motivo de tratamento a longo prazo, atrás somente de hipertensão arterial;5 e, na população entre 15 e 64 anos de idade, é o mais frequente problema de saúde.6,7 Por outro lado, destacam-se a absoluta preponderância e o importante impacto das dores ditas inespecíficas.

Dos moradores examinados por dor musculoesquelética no braço brasileiro do estudo do Programa Comunidade Orientada para o Controle de Doenças Reumáticas (COPCORDPrograma Comunidade Orientada para o Controle de Doenças Reumáticas, do inglês Community Oriented Programme for the Control of Rheumatic Diseases)8 – maiores de 15 anos de idade, com dor na última semana, sem trauma associado –, poucos tiveram diagnóstico de artrose (16%), de fibromialgia (9,4%), de artrite reumatoide (1,7%) ou de lúpus eritematoso sistêmico (0,37%); de modo semelhante a outros países.

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Os vários estudos COPCORDPrograma Comunidade Orientada para o Controle de Doenças Reumáticas no mundo inteiro têm destacado um impacto significativo das dores musculoesqueléticas não específicas e reumatismos de partes moles, sugerindo que uma maior interação com os MFCmédico de família e comunidades e que melhores algoritmos sejam buscados para estratégias interdisciplinares.9

A classificação da dor segundo o ritmo aponta para processos próprios, dentre os quais, convenientemente, estão alguns dos principais alertas clínicos de um paciente com dor, com condutas específicas. O ritmo mecânico, aqui definido como “dor que piora ao movimento ou a posturas prolongadamente mantidas”, aponta para o sistema locomotor (ou a estruturas por ele comprimidas) como fonte de sua variação temporal.

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A expressão dor “mecânica” difere conceitualmente de “dor musculoesquelética” por indicar uma classificação segundo um ritmo, e não segundo um sistema anatômico. Por um lado, nem toda dor mecânica tem origem musculoesquelética (ver as várias síndromes compressivas neuropáticas, como estenose de canal, radiculopatias e compressões periféricas). Por outro lado, nem todo distúrbio musculoesquelético manifesta-se com um ritmo mecânico (ver o ritmo inflamatório das artrites, ou a claudicação intermitente de panturrilhas, ou a dor contínua e progressiva da síndrome compartimental).

Felizmente, a dor mecânica é possivelmente aquela em que o MFCmédico de família e comunidade mais possa contribuir, independentemente da região do País em que atue. A avaliação e a abordagem são eminentemente clínicas, e os exames de imagem são desnecessários na maioria dos casos. Algumas manobras e procedimentos direcionados ao componente miofascial da dor (o mais frequente mecanismo de dor mecânica) têm baixo risco em protocolos restritos, insumos de baixo custo largamente disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUSSistema Único de Saúde), uma lógica subjacente acessível ao paciente e, em geral, a resposta imediata, servindo como práticas ferramentas semiológicas.

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Orientações sobre AVDatividades de vida diária e profissionais, exercícios específicos e enfrentamento funcional (pessoal e familiar) são, com frequência, a parte central do tratamento, adaptadas pelo profissional conforme o exame clínico. Exceto no tratamento de comorbidades, o foco principal das medicações é o (importante) apoio inespecífico a tal trabalho, via estímulo aos mecanismos naturais de inibição ao estímulo doloroso pelo sistema nervoso central (SNC).

Uma proposta de avaliação concisa o suficiente para incorporar-se à consulta clínica usual, na qual vários outros assuntos são discutidos além da dor, é um grande desafio. Será dada uma ênfase particular à dor miofascial, por sua frequência, relevância e abordagem estratégicas. O roteiro e as discussões foram retirados em boa parte do protocolo-piloto do Projeto para Construção de Protocolo de Abordagem de Dor Mecânica para (e por) Médicos de Família, apoiado pelo Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro/RJ, e pretendem servir de estímulo para outras discussões e construções a várias mãos (Quadro 1).

Este artigo insere-se em um contexto. No artigo “Abordagem da dor na atenção primária à saúde”, publicado no Programa de Atualização em Medicina de Família e Comunidade (PROMEFPrograma de Atualização em Medicina de Família e Comunidade) Ciclo 7, Volume 2, desenvolveu-se a discussão sobre o impacto da dor na sociedade, o fenômeno da dor e seus componentes, as classificações de dor mais comuns, os instrumentos de avaliação de dor e o tratamento medicamentoso de dores nociceptivas e neuropáticas. Assim, neste artigo, não serão abordados, senão rapidamente. Não será possível o detalhamento das abordagens comentadas para além de pontos-chave, e o leitor pode remeter-se à bibliografia proposta.

Para saber mais:

Artigos posteriores abordarão o extenso diagnóstico diferencial das principais dores regionais. O leitor é convidado a acompanhar o Grupo de Trabalho em Dor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) - www.sbmfc.org.br - na divulgação e na discussão, tanto de conhecimentos consolidados quanto de pesquisas relevantes em andamento na APSatenção primária à saúde.

Quadro 1

ANGÚSTIAS COMUNS NO MANEJO DA DOR

Por um lado...

Por outro lado...

Como saber que o paciente não está simulando (ou, antes, como se convencer de que a maioria não está)?

A maioria dos pacientes não simula dor crônica, mas sim a valoriza, para que não seja subestimada por outros somente porque se adaptou a suportá-la.

Uma forte base semiológica, empatia e longitudinalidade são os melhores parâmetros para dar ao profissional a segurança de que formou uma boa ideia acerca da dor do paciente.

O que fazer se achados de imagem não são coerentes com a clínica (baixa correlação clinicorradiológica)?

Uma forte base semiológica é o mais confiável parâmetro para valorização de achados de imagem.

O que fazer se achados de exame físico não são coerentes com a clínica?

Frequentemente são necessários o aprofundamento da semiologia e as discussões interdisciplinares e transdisciplinares.

E se o paciente não melhora: quando e como rastrear possível causa oculta ou recomendar a outros profissionais?

Uma forte base semiológica, incluindo avaliação aprofundada de contexto, deve ser a norma em tomada de condutas e em discussões com pareceristas, pois, além do uso racional de recursos e melhor valorização de achados, maximiza a resolutividade.

O que fazer frente ao fato de que a procura por especialistas é sempre maior do que a oferta, assim como frente à ausência de uma cultura bem estabelecida de interdisciplinaridade?

Diagnóstico e abordagem precoces, raciocínio judicioso, coordenação do cuidado e capacitação do paciente otimizam a demanda a especialistas e facilitam o diálogo interdisciplinar.

Dor é muito comum e limitante, restringindo demais intervenções.

O alívio da dor é gratificante e fortalece vínculo e acesso.

Objetivos

Ao final da leitura deste artigo, o leitor será capaz de

  • diferenciar componentes mecânicos e não mecânicos na dor de seu paciente;
  • reconhecer componentes mecânicos relacionados a estruturas distintas;
  • reconhecer padrões sugestivos de dor neuropática;
  • avaliar o impacto de uma dor no paciente e em sua família, incluindo experiências de dor;
  • descrever a hipótese atualmente mais aceita pelo qual um ponto-gatilho (PGponto-gatilho) gera dor a distância;
  • descrever mecanismos de amplificação na dor miofascial;
  • distinguir dor referida ou irradiada e investigar componentes miofasciais;
  • distinguir se a dor miofascial é mecanismo principal, mecanismo secundário a (ou perpetuado por) outro fator ou mero epifenômeno, conduzindo a abordagem de acordo com o que se distinguiu;
  • reconhecer fatores perpetuantes e prioridades de abordagem;
  • reconhecer manobras e procedimentos direcionados ao componente miofascial da dor que, por sua rápida execução e resposta, baixo risco e custo e lógica acessível ao paciente, possam servir de ferramentas semiológicas práticas e facilitadoras ao empoderamento;
  • valorizar a orientação acerca de AVDatividades de vida diária, exercícios específicos e enfrentamento;
  • compreender o papel de medicações e dispositivos auxiliares (palmilhas, muletas) na dor mecânica.

Esquema Conceitual

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