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Casos Clínicos: Choosing Wisely Brasil

Autores: Alexandre Wilton Bissoli Júnior, Mariana Laranjo Gonçalves, Renato Gorga Bandeira de Mello
epub-BR-PROTERAPEUTICA-C11V3_Artigo1

Objetivos

Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de

  • questionar a solicitação de exames e prescrição de medicamentos potencialmente desnecessários;
  • fazer uso racional e adequado dos recursos em saúde;
  • praticar a medicina de alto valor.

Esquema conceitual

Introdução

O lema adotado pela Choosing Wisely de less is more, ou seja, menos é mais, remete aos excessos feitos no cuidado à saúde das pessoas. Muitas questões culturais envolvem essa condição, entre elas a crença de que médicos (profissionais da saúde de modo geral, na verdade) devem fazer tudo o que for possível para manter a vida — não a saúde necessariamente, afinal, em alguns casos, há a ideia de que deve ser feito o possível (e o impossível) para que a vida seja mantida, não apenas com o bem-estar global preservado.

Pode-se perceber, por exemplo, que, no meio médico, muitas das ações tomadas estão associadas ao melhor fazer alguma coisa do que fazer nada, o que, por muitas vezes, recai sobre o conceito de intervencionismo ingênuo, sem considerar criticamente o que deve ser feito e sem racionalizar sobre as evidências que levaram a pensar em uma conduta específica (seja uma pergunta extra na anamnese, seja a solicitação de um exame complementar, seja a prescrição de um medicamento ou orientação em uma consulta).

Assim, muitas vezes, observa-se a repetição de indicações de condutas desnecessárias sendo propagadas entre profissionais, professores e alunos, até que se tornem algo comum para os pacientes, ou seja, uma cultura de que mais é sempre melhor.

Em uma de suas ações, a Choosing Wisely provoca a pensar sobre things we do for no reason1 (coisas que fazemos sem nenhuma razão, em tradução livre), debatendo sobre as práticas que potencialmente não agregam valor ao cuidado dos pacientes, porém continuam sendo feitas, mesmo que não tenham o devido respaldo científico ou mesmo em situações da prática em que agregam pouco ou nenhum valor à saúde daquele paciente.

Na prática, em diversos cenários, aos alunos de medicina, por exemplo, é ensinado que o fazer mais pode ocorrer porque o serviço em que estudam dispõe de verbas para pagar a solicitação de exames diversos, procedimentos variados ou consultas com múltiplas especialidades. Também os orientam para que se protejam judicialmente de um processo ou porque é costume/hábito de determinado serviço que uma conduta padrão seja tomada com os pacientes.

Além disso, com o passar do tempo, os médicos são ensinados e ensinam que se deve sempre prevenir doenças, seja consumindo vitaminas ou complexos ditos imunoprotetores, seja buscando a detecção precoce de doenças, seja fazendo exercícios físicos ou consumindo dietas saudáveis. De modo geral, percebe-se a tendência a supervalorizar os benefícios e subvalorizar os riscos das condutas.

Como o sistema de saúde é baseado em um método de pagamentos fee for service (taxa/pagamento por serviço, em tradução livre), pagando por quantidade — não necessariamente por qualidade de serviços —, há uma tendência a aumentar a solicitação de exames, a quantidade de consultas para um paciente, a indicação de procedimentos, entre outras intervenções. Nesse meio, alguns conceitos tornam-se importantes para a análise desses comportamentos, como:

  • overuse;
  • overdiagnosis;
  • overtreatment;
  • segurança dos pacientes;
  • cuidado baseado em valor.

Quando se pensa em overuse (sobreuso ou uso em excesso, em tradução livre), fala-se sobre condutas de baixo valor sendo feitas repetitivamente, de maneira usual, comum, que nem sempre causam os benefícios que se imagina que ocorram. Algumas questões surgem:

  • você já foi a uma consulta médica em que foram solicitados múltiplos exames de rotina para uma pessoa saudável?
  • você já acompanhou um paciente estável na internação hospitalar em que todos os dias eram solicitados diversos exames?
  • você já pensou se exames pré-operatórios diversos para cirurgias de baixo risco não cardíacas são necessários para todos os pacientes, incluindo aqueles previamente hígidos?
  • você já pensou no custo (monetário, psíquico e pessoal) que isso pode ter a um paciente e a vários, considerando o tamanho continental do país?

Ao falar sobre overdiagnosis (sobrediagnóstico, em tradução livre), trata-se de diagnósticos corretos, porém muitas vezes fúteis ou desnecessários, que têm maior potencial de causar prejuízos (sociais, psicológicos, físicos ou até monetários) do que benefícios.

Muitas vezes, propaga-se a ideia de que se deve fazer sempre uma medicina preventiva e antecipatória sem pensar na individualidade de cada decisão, justificando muitas condutas pela gravidade das consequências de certa doença, sem pensar especificamente na quantidade de pessoas em que aquilo ocorre (ou seja, em sua prevalência ou taxa base).

Como se sabe, por exemplo, alguns tipos de cânceres não se desenvolvem rápida e agressivamente, permanecendo por muitos anos indolentes, sem, muitas vezes, chegarem a causar o óbito dos pacientes, mesmo que detectados.

Além disso, quando se explora o conceito de overtreatment (sobretratamento ou excesso de tratamento, em tradução livre), pode-se pensar em diversos exemplos práticos, como o uso de antibioticoterapia para faringotonsilites virais, o uso de vitaminas como estratégia profilática de deficiências vitamínicas, a suplementação de hormônios para melhora de rendimento ou até a colocação de stents em pacientes com obstruções coronarianas moderadas.

Pode-se observar que, em grande parte das situações, há um contexto cultural dando grande importância à prevenção de doenças para agir em excesso, sob o pretexto de que, fazendo além do necessário, o cuidado tem maior valor.

Vinculada a todos os conceitos citados, está a prática da medicina de alto valor. A conceituação de valor já foi descrita por inúmeros estudiosos do tema — como os professores Michael Porter (professor e teórico de negócios da Harvard Business School) e Christopher Moriates (médico responsável pelo ensino e pela prática do cuidado em saúde baseado em valor no Departamento de Educação Médica da Dell Medical School) — e tem um significado amplo, pois envolve custos (monetários, emocionais, físicos, efeitos colaterais, entre outros), desfechos (duros, como morte, ou qualidade do cuidado e qualidade de vida) e experiência dos pacientes. Nas descrições desse professor, citando The savings illusion — Why clinical quality improvement fails to deliver bottom-line results, os custos monetários ainda podem ser difíceis de serem mensurados, além disso, devem ser pensados em camadas.

Os custos variáveis são aqueles geralmente relacionados a episódios de cuidado (como os de medicações, suprimentos durante uma internação). Os custos mistos englobam os que podem variar moderadamente (como sessões de fisioterapia, salários médicos, tempo de sala cirúrgica e equipamentos). Os custos fixos referem-se àqueles não alterados a curto prazo (como faturamento, sobrecarga organizacional e finanças).

O “valor” no cuidado em saúde pode variar consideravelmente de acordo com as diferentes perspectivas do paciente, da instituição de saúde e do pagador. Para os médicos, pode ser diminuir o sobreuso e a ineficiência dos serviços ao mesmo tempo em que há aumento do cuidado baseado em evidências e feedback positivo do paciente.

Entretanto, para os pacientes, o valor no cuidado em saúde pode significar o enriquecimento da experiência e do foco centrado em desfechos individuais, a diminuição do tempo de espera, o entendimento do que isso pode fazer por eles e o que realmente importa para o paciente.

Os sistemas de saúde são vistos muitas vezes como custosos, fragmentados e inefetivos, que embarcam a coexistência de excesso e a falta de tratamentos e intervenções. Observam-se baixa qualidade, alto custo, má distribuição de cuidado baseado em renda, raça e etnias, além da existência de intervenções que se sobrepõem — questões relacionadas à falta de equipes multiprofissionais (gerando, muitas vezes, duplicidade de avaliações e fragmentação do cuidado), ao avanço da tecnologia com resultados não totalmente conhecidos, entre outros fatores limitantes para o cuidado de qualidade centrado no paciente.

Quando se observam os modelos de cuidado em saúde, percebe-se que a remuneração dos serviços é baseada em quantidade, seja de atendimentos, de procedimentos, de exames solicitados ou de medicamentos prescritos (o que se chama de modelo fee for service). Além disso, o trabalho multiprofissional ainda não é algo disseminado, tendo atualmente, na maioria das vezes, um cuidado centrado muito na figura única do médico, o que potencializa a ocorrência de grande fragmentação e duplicidade de cuidados.

Ao mesmo tempo em que isso acontece, identifica-se que a formação médica ainda não aborda temas como trabalho em equipes multiprofissionais, conflitos de interesse, vieses cognitivos (atalhos mentais que trilham rápidos caminhos quando se pensa em correlações associadas ao que mais se vê no cotidiano, às causas e consequências inferidas, entre outras situações).

Outra questão que pode dificultar o cuidado são as bases de dados desintegradas, com falta de acesso a resultados de exames, de descrições de procedimentos e de comunicação efetiva entre as diferentes equipes que podem atender um único paciente.

Associado a todos os conceitos, o raciocínio clínico é um dos pilares dentro da medicina, fundamental para a boa prática clínica.2 Desenvolvido por meio de conhecimento teórico-prático de cada profissional, levanta hipóteses e elenca condutas possíveis de forma probabilística, baseando-se primordialmente nas informações obtidas com anamnese e exame físico, além de exames complementares solicitados de forma racional, buscando manejar cada paciente de forma individual e personalizada.

Quando continuamente aperfeiçoado, o raciocínio clínico permite que o profissional fique cada vez mais atento aos vieses cognitivos a que está exposto, usando os seus conhecimentos para conduzir cada caso de modo a gerar mais valor para o paciente.

Assim, os médicos tomam decisões considerando não somente os benefícios esperados, mas também as possíveis consequências não intencionais de suas condutas, podendo usar os recursos de forma racional e adequada. Desse modo, o raciocínio clínico nada mais é do que um processo central do pensamento médico, tendo como objetivo final oferecer atendimento de qualidade aos pacientes, que seja embasado em racionalidade, escolhas sensatas e, ainda, que seja seguro.

Considerando a importância do debate dos temas citados, em 2020, o programa Students and Trainees Advocating for Resource Stewardship (STARS) foi trazido ao Brasil depois de ser estabelecido pela Choosing Wisely Internacional (CWI) em diversos países desde 2015.

Presente em cerca de 20 escolas médicas do país em 2022, o STARS-Brasil busca promover o diálogo sobre essas questões entre alunos de medicina por meio de ações lideradas por pares para seus pares.3 É o primeiro núcleo acadêmico da CWI em país de baixa ou média renda, onde os debates sobre o uso racional dos recursos são ainda mais importantes.

Uso racional e adequado dos recursos em saúde

Existem várias questões que influenciam a solicitação de exames e a prescrição de medicamentos potencialmente desnecessários, como:

  • desejo de atendimento completo, sendo ensinados que fazer mais é sempre melhor e que a requisição de uma sequência predefinida de exames evita trabalho no futuro;
  • desconforto quanto à incerteza diagnóstica;
  • cultura/hábito;
  • ensino passivo;
  • sistemas sem dispositivos de alerta sobre preços, indicação formal e sem regulação, com ampla autonomia dos profissionais;
  • medo de judicialização;
  • medicina defensiva;
  • pedidos de pacientes;
  • facilidade de acesso a serviços quando os pacientes estão internados;
  • falta de treinamento e de conhecimento sobre pesar o benefício relativo ao custo ou a potenciais danos.

Muitas vezes, também, os pacientes não são seguidos de modo longitudinal e amplo, com seu cuidado fragmentado em diversas especialidades. As solicitações de hemogramas, eletrólitos, creatinina, ureia, transaminase glutâmica-oxaloacética (TGO), transaminase glutâmica-pirúvica (TGP), dosagens de vitaminas, entre outros exames fáceis de pedir, são consideradas parte do cuidado, passando uma falsa impressão de que esses exames são necessários para o acompanhamento da saúde global das pessoas, deixando de serem pedidos quando as hipóteses diagnósticas consideram sua necessidade para auxílio no raciocínio clínico.

O fígado não está bem ou mal pelos valores de transaminases, os eletrólitos pouco auxiliam no manejo de um paciente estável e saudável e o eletrocardiograma (ECG) em paciente hígido a ser submetido a procedimento cirúrgico de baixo risco não tem valor significativo. Então fica a pergunta: por que os médicos continuam a fazer assim? A resposta é relativamente simples, mas a resolução do problema é altamente complexa: porque se aprende assim e não se é estimulado a pensar criticamente sobre as próprias ações. Dessa forma, a seguir, são propostos alguns casos clínicos para aplicar e discutir esses conceitos.

1

Joaquim, 16 anos de idade, vem para consulta em ambulatório de ortopedia por fratura em tornozelo esquerdo após torção há 6 meses, tendo procurado atendimento em pronto-atendimento, com plano de abordagem cirúrgica, mas perdeu o acompanhamento (refere que não foi notificado sobre a data do procedimento). Nega doenças crônicas, uso de medicações contínuas ou alergias.

Ao exame do tornozelo esquerdo, o paciente apresenta deformidade em região de maléolo lateral, sem dor à palpação, com restrição de flexoextensão plantar, ausência de rotação externa e pele íntegra. A ressonância magnética do pé esquerdo mostra consolidação inadequada e deformidade importante, com plano de artrodese de tornozelo esquerdo. Solicitam-se exames pré-operatórios para o procedimento proposto:

  • ECG;
  • sódio e potássio séricos;
  • hemograma;
  • creatinina sérica;
  • tempo de protrombina (TP);
  • tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPA).

Questões sobre o caso para debate

Considerando o caso 1, o que se pode pensar?

  • Nada mais justo do que solicitar esses exames para proteger o paciente e a equipe se ocorrer qualquer intercorrência, até porque é rotina do serviço pedi-los para todos os pacientes?
  • Talvez os exames não sejam necessários, mas, já que o paciente está em um hospital e vai fazer uma cirurgia eletiva, não há problemas em coletar os exames?
  • Considerando o baixo risco da cirurgia em um paciente previamente hígido, não há necessidade de solicitar exames complementares?
  • Não se deve pedir a nenhum paciente todos esses exames?

Sabe-se que a teoria pode ser muito diferente da prática em muitas situações. Quando se pensa em serviços sobrecarregados, em pacientes multicomórbidos, com uso de múltiplas medicações e tendo histórico de serem submetidos a diversos procedimentos previamente, a prática médica de alto valor encontra diversos empecilhos para ser aplicada.

De qualquer forma, deve-se considerar que a solicitação de exames não é uma prática isenta de riscos e custos (principalmente quando se pensa que é feita em larga escala) e tem impacto para os pacientes de diversas formas (devem dispor de tempo para marcar e realizar o exame, eventualmente se deslocar de uma cidade para outra para fazê-lo; se houver um resultado dito positivo ou alterado, devem prosseguir as investigações, entre outras múltiplas possibilidades).

Sabe-se, na teoria, que os resultados de exames solicitados, muitas vezes, não são simplesmente positivos ou negativos, verdadeiros ou falsos, como muitas vezes interpretados. Na realidade, inicialmente, os testes devem ser aplicados considerando o raciocínio clínico que levou à sua solicitação e as informações que têm a somar, seja aumentando ou diminuindo a probabilidade de uma pessoa ter determinada alteração e de isso ser clinicamente significativo.

Além disso, os resultados de exames solicitados têm graus variados de sensibilidade (capacidade de identificar resultados alterados em pessoas doentes; quando alta, muitas vezes, são usados para rastreamento de doenças, já que têm facilidade de selecionar casos/pacientes doentes) e de especificidade (capacidade de não se alterarem quando pacientes não doentes; quando alta, há grande possibilidade de afastar a doença investigada).

Quando aplicados aos pacientes, então, inicialmente os exames devem ter uma razão para que sejam solicitados (com capacidade de responder a alguma dúvida clínica, ou seja, funcionando realmente como complementar ao raciocínio), as potencialidades de fornecerem resultados verdadeiros devem ser consideradas, além de ser importante sempre compreender em que vão agregar à saúde do paciente.

Na prática, esse contexto pode ser visto em diversas situações, sendo apenas ilustrado aqui como um exemplo de solicitação de exames pré-operatórios para uma cirurgia de baixo risco em um paciente com baixo risco de complicações.4,5

De acordo com a American Society of Anesthesiologists Task Force on Preanesthesia Evaluation, as testagens de pacientes assintomáticos podem resultar em desperdício de recursos em saúde, adiamento ou cancelamento desnecessário de cirurgias ou, no pior cenário, adição de testes diagnósticos e intervenções médicas potencialmente danosas em busca de liberação para o procedimento cirúrgico proposto.6

De qualquer maneira, os resultados das testagens de pacientes assintomáticos podem ser exemplificados de diversas maneiras, como a requisição de checkups em pacientes saudáveis e a solicitação diária de exames de sangue em pacientes estáveis hospitalizados. Muitas vezes, os exames não são revisados ou seus resultados não são considerados, porque algumas alterações já podiam ser esperadas.

Ao mesmo tempo, quando se busca o diálogo sobre essas questões, não se quer dizer que para nenhum paciente devem ser solicitados múltiplos exames. Afinal, com suas devidas indicações, os exames complementares surgiram e continuamente são aperfeiçoados, em especial, para auxiliar na definição diagnóstica e ajudar a guiar estratégias terapêuticas para os pacientes. Assim, devem ser usados de maneira objetiva e criteriosa.

2

Luiz, 35 anos de idade, iniciou quadro de odinofagia, tosse seca e febre há 4 dias. Ele é atendido após espera de 10 horas na Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Por estar no meio de um novo surto de COVID-19 em sua cidade, o paciente realizou teste rápido, que prontamente veio positivo. Então, foi-lhe recomendado isolamento por 10 dias e recebeu prescrição de sintomáticos.

No 7º dia de sintomas, o paciente percebeu piora na tosse, agora associada à dispneia aos médios esforços e a reaparecimento da febre (39°C aferida e relatada), sendo agora internado no hospital universitário (HU) e recebendo oxigênio em baixo fluxo.

ATIVIDADES

1. Quais medicamentos poderiam ser prescritos para melhorar o desfecho do paciente do caso 2?

A) Cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, anticoagulante oral.

B) Terapia monoclonal, pedindo na justiça a importação da dose necessária só para esse paciente.

C) Manutenção do paciente estável, acompanhando saturação de oxigênio, somente com oxigênio.

D) Dexametasona.

Confira aqui a resposta

Resposta incorreta. A alternativa correta é a "D".


A dexametasona foi a primeira medicação utilizada para pacientes internados com COVID-19 com efeito real na prática clínica diária, com o estudo RECOVERY em junho de 2020 (Matthay e Thompson). Certamente, diante de um paciente como o do caso 2, há forte recomendação de uso de corticoide para reduzir a tempestade inflamatória nas fases tardias dessa doença. Contudo, a hipótese fisiopatológica não é suficiente para a prescrição de um medicamento, caso contrário, não seria necessária a realização de ECRs, os quais aplicam o conceito testado de maneira a eliminar diversos vieses e fatores confundidores possíveis. Embora confirmada a eficácia do medicamento para COVID-19, cabe avaliar o quão relevante é na prática.

Resposta correta.


A dexametasona foi a primeira medicação utilizada para pacientes internados com COVID-19 com efeito real na prática clínica diária, com o estudo RECOVERY em junho de 2020 (Matthay e Thompson). Certamente, diante de um paciente como o do caso 2, há forte recomendação de uso de corticoide para reduzir a tempestade inflamatória nas fases tardias dessa doença. Contudo, a hipótese fisiopatológica não é suficiente para a prescrição de um medicamento, caso contrário, não seria necessária a realização de ECRs, os quais aplicam o conceito testado de maneira a eliminar diversos vieses e fatores confundidores possíveis. Embora confirmada a eficácia do medicamento para COVID-19, cabe avaliar o quão relevante é na prática.

A alternativa correta é a "D".


A dexametasona foi a primeira medicação utilizada para pacientes internados com COVID-19 com efeito real na prática clínica diária, com o estudo RECOVERY em junho de 2020 (Matthay e Thompson). Certamente, diante de um paciente como o do caso 2, há forte recomendação de uso de corticoide para reduzir a tempestade inflamatória nas fases tardias dessa doença. Contudo, a hipótese fisiopatológica não é suficiente para a prescrição de um medicamento, caso contrário, não seria necessária a realização de ECRs, os quais aplicam o conceito testado de maneira a eliminar diversos vieses e fatores confundidores possíveis. Embora confirmada a eficácia do medicamento para COVID-19, cabe avaliar o quão relevante é na prática.

Questões sobre o caso para debate

Quantas pessoas internadas por COVID-19 são beneficiadas com o uso de dexametasona?

  • A grande minoria?
  • A minoria, mas o suficiente para usá-la?
  • A maioria?
  • Todas as pessoas?

Na realidade, a grande minoria das pessoas internadas por COVID-19 será beneficiada com o uso de dexametasona. Isso decorre de as terapias na medicina terem ação limitada sobre os indivíduos que podem ser beneficiados ou não, especificado pelo conceito chamado número necessário para tratar (NNT).7

O NNT é uma medida do impacto causado por uma intervenção, representando a quantidade de pessoas que precisam receber um tratamento para que apenas uma sofra o impacto.

O NNT não é uma medida de eficácia ou ineficácia, como se fosse possível afirmar que a medicação com NNT alto, isto é, aquela que precisa de muitos pacientes tratados para aparecer o benefício, não funciona. Na realidade, o cálculo do NNT só faz sentido naquelas intervenções já comprovadamente validadas em ensaio clínico randomizado (ECR). Logo, em fármacos que funcionam, mesmo assim, funcionam na minoria dos casos.

Qualquer pessoa pode calcular o NNT, de qualquer medicação e de qualquer intervenção, extraindo os dados dos ensaios clínicos que testaram tal tratamento para certa doença. O NNT é representado por:

NNT = 100/RAR
Onde RAR significa redução absoluta do risco.

A RAR é a aplicação da eficácia em um contexto individualizado, a qual é variável de acordo com a redução relativa do risco (RRR) e o risco original.

Normalmente os estudos trazem apenas o risco relativo (RR), isto é, a probabilidade de um desfecho ocorrer em certa população. Por exemplo, 10% dos pacientes morreram de câncer em um grupo controle e, no grupo intervenção com nova quimioterapia, morreram 8% dos pacientes. Diante desse número fictício, a RR (risco intervenção/risco controle) tem o resultado de 0,8. Cabe lembrar que um risco abaixo de 1 significa proteção em relação ao desfecho (nesse caso, morte).

Por sua vez, a RRR será a medida de eficácia, calculada por 1 – RR. Nesse caso, 1 – 0,8 = 0,2. Logo, para qualquer risco anterior, o RRR mantém-se constante, demonstrando a eficácia da terapia propriamente dita, que diminui em 20% o risco de morte por câncer com a nova quimioterapia.

Agora, para compreender a RAR, ficou fácil. Como diz o nome, reduzir absolutamente algo na matemática significa uma subtração. Então:

RAR = risco sem intervenção – risco com intervenção

Contudo, cabe lembrar que os estudos normalmente enfocam no RRR. Isso decorre do fato de o RRR normalmente ser um número grande, vistoso aos olhos do leitor. Contudo, a RAR coloca o “pé no chão”, pois depende do risco prévio. Usa-se novamente o exemplo do câncer e do novo tratamento.

Caso um câncer leve a óbito 10% dos indivíduos, aplicando 20% de RRR da nova terapia, há 8% de risco novo. O RAR (10% – 8% = 2%) significa que, de 100 pessoas, apenas 2 serão realmente salvas. Assim, é possível perceber como é muito mais atrativo publicar que ocorre 20% menos risco de morte (RRR), do que 2% de redução de risco de morte (RAR).

Certo, e se o câncer fosse menos agressivo, com apenas 2% de morte? O RRR continua constante (20%), então, 2% x 0,8 (o RR para facilitar a conta nesse caso), tem-se um novo risco de 1,6%. Recapitulando: 2% de mortalidade sem tratamento, 20% de RRR, nova mortalidade com tratamento de 1,6%. RAR = 2 - 1,6 = 0,4%. Logo, consegue-se perceber que o risco original influencia o RAR. Quanto maior o risco, maior o RAR. Quanto menor o risco, menor o RAR.

Consequentemente o NNT irá acompanhar essa dinâmica. No primeiro caso:

NNT = 100 / RAR NNT = 100 / 2 NNT = 50

Assim, 50 pessoas com esse câncer precisam ser tratadas com a nova terapia para que apenas uma seja beneficiada. No segundo caso:

NNT = 100 / 0,4 NNT = 250

Ou seja, quanto menor o risco original, mais pessoas precisam ser tratadas para beneficiar individualmente um paciente.

Quando se transpõe tal discussão para a COVID-19, essa preocupação permanece em mente, haja vista ser uma doença com letalidade próxima a 2%. As intervenções, mesmo aquelas que trouxeram RRR vistosos de 20%, ainda salvariam poucas pessoas em proporção.

A educação da maioria das escolas médicas passa a impressão de que todas as terapias, além de 100% eficazes, são 100% úteis para os pacientes. Na realidade, compreender o NNT traz humildade na prática clínica. Obviamente, diante de uma investigação científica bem conduzida, com dados robustos de vários ECRs comprovando a eficácia de uma intervenção, nunca se deixa de conceder tal tratamento a algum paciente. Contudo, é fundamental que o profissional explique ao paciente que ele pode ser a pessoa beneficiada ou não. Especialmente para o médico, a incerteza de estar medicando outras 49 pessoas com câncer e não saber quem será o único beneficiado é angustiante.

Logo, quando são vistas propagandas de novos medicamentos, ou reportagens que tomar vinho faz viver mais, ou que se deve dar qualquer medicamento mesmo sem comprovação em uma situação pandêmica (só para garantir, vai que no futuro descobrem que funciona), ainda que todos estejam corretos, a grande minoria dos que receberem essas intervenções será beneficiada. Isso decorre do fato de existirem poucas terapias com NNT incidente relevante. O NNT incidente é esse que foi calculado até agora, com vistas ao risco futuro, como mortalidade, em que a maioria do grupo não tem o desfecho esperado.

No caso do NNT prevalente, quando se quer tirar um desfecho já presente do paciente — ou seja, os 100 já possuem o desfecho e este tende a valores próximos de 1, por exemplo, morfina para quem está com dor forte —, é necessário tratar próximo de 1 paciente para que 1 seja beneficiado. Nesse caso sim, quase todos são beneficiados. Contudo, quando se coloca o elemento tempo e um grupo que varia menos, o risco de algo não ocorrer é mais difícil de ser alterado (paciente ser salvo) do que o risco de retirar algo que já existe (paciente não sentir dor). A Figura 1 ilustra esse tema.

FIGURA 1: Diferença entre o grupo intervenção e controle. // Fonte: Correia (2012).7

Nesse caso, os números são: 100 indivíduos em cada grupo, 12 óbitos no controle (risco antigo) e 8 óbitos no tratamento (risco novo). O RR (8 / 12) = 0,66. Logo, RRR (1 - 0,66) = 0,33. RAR (12% - 8%) = 4%. NNT (100 / 4) = 25.

Assim, é preciso dar o novo medicamento para 25 pacientes com essa doença para que 1 seja beneficiado. Contudo, pode-se observar pela Figura 1 que, dos 100 pacientes, 88 não vão morrer apesar da intervenção, 8 morrerão apesar da intervenção e apenas 4 serão salvos.

Assim, percebe-se como os médicos fazem muito menos do que imaginam por seus pacientes na questão de salvar vidas. Além disso, não faz sentido o discurso “na minha experiência” o medicamento funciona ou não. É humanamente impossível reconhecer, entre 100 pessoas, os diversos desfechos possíveis quando se intervém. Apenas um ECR poderá randomizar e calcular a real diferença entre os grupos e auxiliar na tomada de decisão individualizada diante do paciente real.

Caso queira se surpreender com medidas de NNT das terapias mais famosas na prática clínica, acesse o site theNnt.com.

ATIVIDADES

2. O paciente do caso 2 foi internado por COVID-19 e recebeu dexametasona. Quantos pacientes iguais a ele precisam ser tratados para que 1 seja beneficiado, ou seja, qual o NNT dessa terapia?

A) 33.

B) 5.

C) 10.

D) 50.

Confira aqui a resposta

Resposta incorreta. A alternativa correta é a "A".


Precisam ser tratados 33 pacientes para que 1 seja beneficiado. Mesmo o melhor fármaco até então descoberto (e amplamente disponível) para o tratamento da COVID-19 salva 1 entre 33 indivíduos. Segundo a revisão da COCHRANE, o RR = 0,89, RAR = 3%, NNT = 33 (Wagner e colaboradores).

Resposta correta.


Precisam ser tratados 33 pacientes para que 1 seja beneficiado. Mesmo o melhor fármaco até então descoberto (e amplamente disponível) para o tratamento da COVID-19 salva 1 entre 33 indivíduos. Segundo a revisão da COCHRANE, o RR = 0,89, RAR = 3%, NNT = 33 (Wagner e colaboradores).

A alternativa correta é a "A".


Precisam ser tratados 33 pacientes para que 1 seja beneficiado. Mesmo o melhor fármaco até então descoberto (e amplamente disponível) para o tratamento da COVID-19 salva 1 entre 33 indivíduos. Segundo a revisão da COCHRANE, o RR = 0,89, RAR = 3%, NNT = 33 (Wagner e colaboradores).

3

Rubens, 83 anos de idade, vem acompanhado da filha à consulta no ambulatório de urologia após dois anos sem acompanhamento para não perder o vínculo com o serviço. Nega queixas urinárias, inclusive referindo grande melhora dos sintomas após iniciar uso de α-bloqueador e inibidor da 5α-redutase.

Com o paciente mostrando dificuldade de explicar seus sintomas, a filha refere que, em sua última consulta, havia sido comentado que apresentava um adenocarcinoma de próstata após ter feito ressonância magnética, que indicava PI-RADS 5 (grande chance de apresentar câncer clinicamente significativo).

Além disso, a filha conta que o paciente apresenta histórico de quedas frequentes. O paciente tem diabetes melito tipo 2, é hipertenso, tem hipoacusia (sem acompanhamento) e está em uso de metformina, sinvastatina, omeprazol, captopril, hidroclorotiazida, ácido acetilsalicílico, dutasterida e tansulosina.

Ao exame, o paciente apresenta-se orientado em pessoa-espaço-tempo, mas com dificuldade de comunicação, hipoacusia importante, além de deambular somente com ajuda de familiares. Como conduta, solicitou-se novo PSA e cintilografia óssea pensando em identificar possível aumento de lesão prostática e eventual metástase, explicando à filha a preocupação com o risco de metástases.

Em resumo, está-se diante de um paciente idoso multicomórbido, com descompensação de doenças sistêmicas, com baixa expectativa de vida com saúde, recebendo a indicação (e não a proposição) de rastreamento de doenças, no caso, a busca ativa de possíveis metástases.

Questões sobre o caso para debate

Diante de uma história com um final já conhecido, pode-se julgar o passado com um prisma diferente:

  • será que, se o paciente tivesse feito o screening de câncer de próstata, não teria chegado nessa condição?
  • será que uma simples visita anual de checkup ao urologista não o levaria a diagnosticar mais cedo seu câncer, intervindo mais cedo para salvá-lo?
  • se o paciente tivesse condições cirúrgicas, a cirurgia não seria curativa?

Essas são perguntas levantadas com frequência por quem argumenta a favor da campanha Novembro Azul, divulgada tanto pela imprensa leiga como por hospitais e clínicas, visando a um objetivo muito nobre: quanto mais cedo se descobrir o câncer, mais vidas serão salvas. Apenas questionar essa frase parece ser o suficiente para perder o CRM ou, pelo menos, o prestígio entre os colegas urologistas. Será mesmo?

ATIVIDADES

3. Os cânceres são entidades clínicas que geram arrepios em qualquer médico, quem dirá se um conhecido ou familiar sofre dessa condição. Diante disso, as neoplasias evoluem sempre da mesma forma?

A) Sim, sempre de forma rápida e letal.

B) Sim, sempre de forma rápida, nem sempre letal.

C) Não, cada neoplasia possui sua característica. Inclusive algumas não são necessariamente letais, como o câncer de próstata.

D) Não, pouquíssimos cânceres são letais. Se ocorreu óbito, foi por negligência médica ou do paciente.

Confira aqui a resposta

Resposta incorreta. A alternativa correta é a "C".


Talvez a primeira parte da questão fosse de conhecimento comum. Sabe-se que o corpo humano é um organismo complexo, com as células de cada órgão possuindo as próprias capacidades de multiplicação celular, bem como os diferentes tipos de tumores possuindo diferentes evoluções de acordo com as mutações genéticas sofridas.

Resposta correta.


Talvez a primeira parte da questão fosse de conhecimento comum. Sabe-se que o corpo humano é um organismo complexo, com as células de cada órgão possuindo as próprias capacidades de multiplicação celular, bem como os diferentes tipos de tumores possuindo diferentes evoluções de acordo com as mutações genéticas sofridas.

A alternativa correta é a "C".


Talvez a primeira parte da questão fosse de conhecimento comum. Sabe-se que o corpo humano é um organismo complexo, com as células de cada órgão possuindo as próprias capacidades de multiplicação celular, bem como os diferentes tipos de tumores possuindo diferentes evoluções de acordo com as mutações genéticas sofridas.

O que poucos sabem, talvez o ponto central do erro do screening de câncer prostático, é a história natural desse câncer. Segundo Welch, pode-se fazer uma analogia entre a evolução das neoplasias e uma fazenda com diferentes animais (pássaros, coelhos e tartarugas), supondo que se deseje construir uma cerca (o screening) para evitar a sua fuga.8

Os pássaros irão fugir, independentemente da cerca. Um exemplo é o caso dos tumores de pâncreas, em que 90% dos pacientes falecem dentro de 1 ano, apesar de qualquer tratamento. No caso dos coelhos, é possível construir a cerca antes, capturando-os antes de conseguirem fugir, ou seja, são aquelas neoplasias que o rastreamento consegue detectar na fase assintomática, possibilitando uma intervenção e consequentemente a cura.

Talvez o exemplo mais famoso seja o câncer de colo de útero, com recomendação de screening pela U.S. Preventive Services Task Force (USPSTF) em mulheres entre 21 e 65 anos de idade, detectando diferentes células pré-neoplásicas antes de tornarem-se malignas propriamente ditas.

No caso das tartarugas, elas não vão a lugar algum, com ou sem cerca. Isto é, a cerca é um excesso, é desnecessária. Por incrível que pareça, o tumor de próstata é exatamente esse tipo. Como a sua fisiopatologia provavelmente envolve doses contínuas de testosterona nos homens, há uma relação positiva entre o seu aparecimento e o mero envelhecimento do indivíduo.

A prevalência do tumor de próstata entre homens de 80 anos é de 50% e, entre homens de 100 anos, praticamente afeta 100% deles. Dessa forma, era de se esperar que todos os homens idosos morressem de câncer de próstata, mas não é isso que os dados e a realidade demonstram. Apenas 11% manifestam (faixa etária de 61 a 70 anos), em vida, clínica compatível com a doença e 13% falecem de outras causas com o câncer e não do câncer.9 Essas proporções tendem a aumentar com a idade, haja vista a prevalência ainda maior.

Depois dessa explicação, é possível estar se perguntando: mesmo assim, não compensa pecar pelo excesso e identificar os casos raros de progressão para metástases nos homens predispostos a tal condição? O que será que dizem as evidências sobre o rastreamento?

Cabe usar como exemplo um evento com mil homens: para entrar, todos deveriam estar em dia com o checkup no urologista. Qual seria a correta periodicidade e a idade para iniciar as consultas?

  • Começar logo após iniciar as relações sexuais, indo todo ano ao urologista?
  • Começar a partir dos 40 anos, indo todo ano ao urologista, somente em novembro?
  • Começar aos 55 anos, indo a cada 4 anos ao urologista e parar aos 69 anos?
  • Ir só quando tiver sintomas, como hematúria, disfunção erétil e alteração em frequência e padrões urinários?

Quais exames poderiam ser indicados para o paciente fazer?

  • Só toque retal?
  • Toque retal e PSA, para aumentar a sensibilidade?
  • Se disponível, ultrassonografia transretal, além do toque e do PSA?
  • Tudo que tiver disponível: toque, PSA, ultrassonografia, ressonância e biópsia, pois quanto mais melhor?

Desses mil homens, quantos terão sua vida salva pelo rastreamento?

  • 500 homens?
  • 250 homens?
  • 100 homens?
  • 1 homem?

Ainda no mesmo evento, o que aconteceria com os demais homens que não seriam salvos pelo rastreamento?

  • 50 homens ficariam impotentes?
  • 15 homens ficariam com incontinência urinária?
  • 5 homens morreriam apesar do rastreamento?
  • Ou todas as anteriores?

Cabe responder às questões aos poucos. A revisão da USPSTF (2018)10 utilizou dois ECRs: o Prostate, Lung, Colorectal and Ovarian (PLCO) e o European Randomized Study of Screening for Prostate Cancer (ERSPC). A primeira informação relevante é a forma como foram conduzidas as consultas de rastreamento. Para a surpresa de muitos, a idade elegível para o acompanhamento do PCLO foi entre 55 e 74 anos, utilizando toque retal e PSA anualmente por 5 anos.

Já no ERSPC, a idade foi entre 55 e 69 anos, utilizando preferencialmente PSA, porém alguns centros utilizaram toque e ultrassonografia transretal a cada quatro anos (ou dois anos nos centros da Suécia). Dessa forma, já se percebe que não há paralelo nas pesquisas em relação à forma de rastreio estimulada pela campanha do Novembro Azul: a partir dos 40 anos anualmente.10 Contudo, para responder à questão dos exames indicados, é preciso ir mais a fundo na discussão.

Desconsiderando a discussão do viés de contaminação ocorrido no PCLO, pois não é o escopo do capítulo, ambos os estudos trazem luz para a discussão. No primeiro, não houve redução de mortalidade (ainda que mais cânceres foram rastreados devido à contaminação). No segundo, 6/1.000 homens faleceram de câncer no grupo controle.

Ou seja, o máximo de vidas salvas pelo rastreamento (grupo intervenção) não poderia passar de 6 em cada mil homens. Ainda assim, o estudo demonstrou que, entre esses 6 homens, apenas 1 morte e 3 casos metastáticos foram evitados. Ora, quer dizer que vale a pena! Quem não quer ser esse 1 homem salvo!

Entretanto, quando se decide qualquer intervenção nos pacientes, ainda mais com efeito na saúde pública de um país inteiro, é preciso pesar os riscos e malefícios. Nesse momento, é possível se questionar: o que um toque ou um exame de sangue podem trazer de dano? Na realidade, não são esses exames os vilões, é o seguimento.

Isso decorre do fato de que, se o toque, PSA ou qualquer outro exame estiver alterado, o médico seguirá com a investigação, necessitando de biópsias e, no final, de cirurgias. Caso não exista benefício real, apenas restarão danos colaterais dessas intervenções no indivíduo, como infecções e hemorragias nas biópsias e impotência sexual e incontinência urinária na prostatectomia.

Diante disso, a revisão da USPSTF estimou, a partir dos dados do ERSPC, os efeitos do rastreamento na população geral:10

  • 220 biópsias desnecessárias;
  • 240 falsos-positivos;
  • 65 cirurgias e radioterapias;
  • 50 impotências sexuais;
  • 15 incontinências urinárias;
  • 5 mortes apesar do rastreamento.

Para concluir, os autores deste capítulo corroboram as recomendações do Instituto Nacional de Câncer (INCA): “Não há evidência científica de que o rastreamento do câncer de próstata traga mais benefícios do que riscos e, portanto, até o momento, recomenda-se a decisão compartilhada, onde o paciente irá discutir os potenciais benefícios e danos do rastreio com o seu médico”.11

Logo, a educação em saúde — principalmente desestimulando o paciente a entrar na estrada sem volta do rastreamento (caso algum exame esteja alterado, o paciente correrá os riscos citados), devido ao comportamento indolente desse câncer em sua maioria — e a capacitação da população para reconhecer os sintomas do câncer de próstata (alteração do hábito urinário, hematúria e disfunção erétil), permitindo o diagnóstico precoce daqueles casos mais graves e passíveis de intervenção, são fundamentais para o ensino do cuidado less is more recomendado pelo projeto STARS-CWB.

É difícil fazer um paciente assintomático se sentir melhor. (Stanley O. Hoerr)

Para mais detalhes sobre o rastreamento do câncer de próstata, são recomendadas as seguintes leituras:

O que não te falam sobre o Novembro Azul? — Raciocínio Clínico (https://raciocinioclinico.com.br/o-que-na-te-falam-sobre-o-novembro-azul/).

Mitos nas campanhas de prevenção de câncer (https://revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2019/11/21/mitos-nas-campanhas-de-check-e-prevencao-de-cancer).

4

Menino, 2 anos de idade, apresenta manchas vermelhas no corpo há 3 dias. Sobre a história da moléstia atual, há 15 dias apresentou febre (39°C), coriza e tosse. Foi diagnosticado com faringite, sendo prescrita amoxicilina, a qual fez uso durante 7 dias. A mãe refere melhora dos sintomas após aproximadamente 7 dias do início do antibiótico.

Há 3 dias, notou manchas vermelhas no corpo com aumento progressivo. O médico da criança solicitou hemograma para o dia seguinte. Nega gatos em casa. O irmão teve um quadro viral semelhante antes do paciente, com resolução espontânea. Ao exame físico, o paciente estava descorado +/4, hidratado, eupneico e anictérico, além de:

 

  • temperatura: 36,7°C;
  • pulso: 104;
  • PA: 110x50mmHg;
  • petéquias difusas em tronco e membros;
  • enantema;
  • membranas timpânicas pouco hiperemiadas e abauladas;
  • faringe hiperemiada, com hipertrofia de tonsilas e sem exsudato, gânglios com aproximadamente 1,5cm de diâmetro em cadeia cervical bilateral e axilar bilateral;
  • cardíaco: bulhas rítmicas normofonéticas sem sopros;
  • pulmões: sem ruídos adventícios;
  • abdome: flácido e indolor, fígado palpável a 4,5cm do RCD e baço a 5,5cm do RCE;
  • extremidades e genitália normais.

Em relação aos exames complementares, o pediatra observou plaquetopenia no hemograma de origem e então internou a criança para investigação. Os exames laboratoriais mostraram:

  • Hb: 10,2;
  • Ht: 33,1%;
  • leucócitos: 20.000 (meta = 1%, bastonetes = 3%, neutrófilos = 8%, linfócitos = 38%, atípicos = 45%, monócitos = 5%);
  • plaquetas: 21.000;
  • TAP: normal;
  • TTPA: normal.

Questões sobre o caso para debate

Certamente algo incomoda nessa história. Qual será o motivo do aparecimento de petéquias e enantemas em uma criança com faringite? Foi correta a prescrição do antibiótico inicialmente? Juntando as duas perguntas, será que existe relação entre a faringite e o uso de antibiótico para o aparecimento das petéquias? Ou se deve considerar uma síndrome que une sintomas de faringite com manchas pelo corpo?

Qual é a principal etiologia das faringites?

  • Viral, em até 80% dos casos?
  • Viral, só por conta da COVID-19?
  • Bacteriana, em 90% dos casos?
  • Igual distribuição bacteriana, viral e alérgica?

Diante apenas de uma faringite não complicada, em um pronto-socorro, qual deve ser a conduta inicial?

  • Iniciar antibiótico e avisar o paciente para retornar dentro de 7 dias caso haja piora do quadro ou novos sintomas?
  • Realizar uma boa clínica e escores que auxiliam na diferenciação da etiologia bacteriana para só então prescrever o antibiótico?
  • Realizar anamnese e exame físico completos, apenas para buscar sinais de gravidade e complicações, haja vista não ser possível diferenciar clinicamente as etiologias de faringite?
  • Considerar sempre a etiologia viral, prescrever sintomáticos e avisar o paciente para retornar dentro de 7 dias caso haja piora do quadro ou novos sintomas?

Diante de uma faringite associada a exantema, linfadenopatia e hepatoesplenomegalia, qual é a principal etiologia a ser considerada?

  • Escarlatina, causada pela bactéria Streptococcus pyogenes β-hemolítico?
  • IST, principalmente sífilis, gonorreia e HIV?
  • Síndrome mono-like, que inclui mononucleose, citomegalovírus, toxoplasmose e HIV agudo?
  • Não é possível realizar hipóteses pela clínica, somente com testes de sorologia e, na ausência desses, tratamento empírico com antibiótico β-lactâmico?

Ao discutir o caminho diagnóstico de faringites isoladas, o cuidado adequado passa, antes de considerar as melhores evidências e o cálculo de valor, pela correta interpretação de seu problema clínico, visando ao diagnóstico e ao tratamento direcionado de maneira mais específica possível.12,13 Para tanto, utiliza-se o raciocínio clínico.

O raciocínio clínico é definido pela Association for Medical Education in Europe (AMEE) como “o conjunto dos processos e pensamentos pelos quais os profissionais de saúde selecionam, interpretam, analisam e combinam informação com o objetivo de tomar decisões sobre um paciente em uma determinada situação clínica”.14

Embora muitos possam acreditar que o raciocínio clínico é meramente uma habilidade desenvolvida na prática pelos profissionais mais experientes, esse conceito pode ser desenvolvido e ensinado como método nas escolas médicas e buscado pelo próprio estudante de medicina iniciante.

Para aprimorar o processo diagnóstico, deve ser considerado o seu tripé principal: a coleta de dados, o conhecimento das doenças e o próprio raciocínio, que realiza a ponte entre o observado nos pacientes e as características das doenças estudadas.

Aplicando esse conceito no diagnóstico e na conduta diante de uma faringite, deve-se iniciar o raciocínio pela epidemiologia e história natural dessa doença. Embora os dados variem, entre 50 e 80% das faringites são de etiologia viral, que, assim como as bacterianas, são autolimitadas entre 7 e 10 dias, sendo que essas ainda não possuem complicações relevantes.

Portanto, o segundo passo na avaliação será a identificação de complicações imediatas, como disfonia, estridor, dispneia, odinofagia unilateral, abaulamento de orofaringe ou palato e rigidez de nuca, as quais necessitam de investigação mais detalhada, devido ao risco de comprometimento de laringe, etiologias mais graves (tuberculose), abscessos, meningite, entre outros.

O terceiro passo é a diferenciação clínica entre as causas bacterianas e as virais pelo critério de Centor, o qual consiste em sinais compatíveis com infecção por Streptococcus β-hemolíticos do grupo A (principal etiologia bacteriana), como exsudato tonsilar, linfadenopatia cervical anterior dolorosa, febre e ausência de tosse. Caso cada uma das características esteja presente, contabilizam 1 ponto.

O critério de Centor é útil para definir a próxima conduta, que é o uso ou não do teste rápido para identificação dessa bactéria ou, caso não esteja disponível, o aumento de suspeita de causa bacteriana, portanto, o uso mais racional de antibiótico.

Diante disso, caso haja pontuação inferior a 3, a probabilidade de infecção por Streptococcus é baixa, não necessitando de teste ou uso de antibiótico. Se a pontuação for superior ou igual a 3, realiza-se teste rápido. Se este for positivo, inicia-se antibioticoterapia; se negativo, é feita cultura de orofaringe.

Dessa forma, percebe-se a inadequação da conduta da maioria dos atendimentos em pronto-socorro, nos quais quase invariavelmente há prescrição de antibiótico. As consequências desse uso excessivo serão discutidas a seguir. Antes, porém, é importante entender o que houve com o menino do caso 4.

Outro passo fundamental no raciocínio clínico é desenvolver a habilidade de enxergar diagnósticos sindrômicos, definidos pelo National Institute of Health (NIH) como o “conjunto de sintomas ou condições que ocorrem juntos e sugerem a presença de certa doença ou aumentam a chance de desenvolver a doença”.15 Já Calvo e colaboradores reconhecem como o “complexo de sinais e sintomas que indicam uma condição específica, a qual não possui causa necessariamente compreendida”.16

Quando se utiliza o termo diagnósticos sindrômicos, percebe-se que várias doenças compartilham os mesmos sinais e sintomas, ainda que não se consiga estabelecer com exatidão o diagnóstico. Contudo, é útil para limitar as hipóteses levantadas a partir de um quadro com dados mais genéricos.

Ao analisar o caso 4, pode-se resumi-lo da seguinte forma: menino, 2 anos de idade, previamente hígido, apresenta, dentro de 15 dias, quadro de faringite aguda, associado a exantema petequial, hepatoesplenomegalia e linfadenopatia (cervical e axilar). Fez uso de amoxicilina no período, apresentando melhora da faringite em 7 dias. O hemograma revela anemia, plaquetopenia e linfocitose, com predomínio de linfócitos atípicos.

O resumo do caso possibilita evidenciar os principais achados em ordem lógica, permitindo ter um panorama mais completo do caso e estabelecer, se possível, um diagnóstico sindrômico. Esse é um clássico caso de síndrome mononucleose-like, isto é, um conjunto de sinais e sintomas (faringite, exantema, hepatoesplenomegalia e linfadenopatia), que revelam um conjunto de doenças que compartilham essas características. Entre elas, citam-se a própria mononucleose, a infecção por citomegalovírus, a toxoplasmose e o HIV agudo.

Obviamente cada etiologia possui particularidades que as diferenciam, contudo, justamente por estarem juntas em uma síndrome, isso nem sempre é fácil. O médico encarregado pelo caso, certamente compreendendo esse fato, buscou o exame complementar mais específico para estabelecer o diagnóstico: hemograma com linfócitos atípicos. Tal característica é a mais sugestiva de mononucleose, já que a fisiopatologia da infecção pelo Epstein-Barr envolve essas células.

Entretanto, as petéquias não surgiram após o uso do antibiótico? Será que se pode considerá-las dentro do diagnóstico de mononucleose? A resposta é sim, essas lesões podem ser provenientes tanto da fisiopatologia das síndromes mono-like, que podem reduzir a quantidade de plaquetas circulantes e consequentemente gerar extravasamento capilar, como da reação adversa da amoxicilina quando aplicada em um paciente com essa síndrome viral, não sendo completamente conhecida a sua causa.

Logo, é perceptível o uso indiscriminado de antibióticos nas faringites, ilustrado nesse caso clínico. Primeiro, a epidemiologia torna mais provável as etiologias virais, tratadas apenas com sintomáticos, haja vista ser autolimitada e sem complicações.

Em segundo lugar, a diferenciação clínica não foi feita, e os sinais do paciente não fechavam critério de Centor positivo. Em terceiro lugar, a não realização de exame físico completo na criança impossibilitou a percepção dos demais achados sugestivos de síndrome mono-like, o que dificultou o diagnóstico diferencial com a reação adversa do antibiótico. Por fim, não foram considerados os riscos crescentes de resistência microbiana devido ao uso inapropriado de antibiótico. Para tanto, foi desenvolvido o conceito de stewardship em antibióticos.

O conceito de stewardship em antibióticos foi conceituado por Gerding como o “a formulação otimizada, dose e duração que resulta nos melhores desfechos clínicos no tratamento ou prevenção de infecção, com o mínimo de toxicidade e impacto na resistência”.17

A partir desse conceito de stewardship, as instituições relevantes mundialmente lançaram manuais de melhores condutas no uso desse medicamento, como o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) e a Organização Mundial da Saúde (OMS).18,19

Para concluir, o caso desse garoto revela uma clássica situação de overuse, diante de um raciocínio clínico incipiente e do desconhecimento de riscos e consequências imediatas (reação adversa e dificuldade diagnóstica) ou tardias (resistência microbiana) do uso de antibióticos sem o adequado seguimento do stewardship, revelando uma conduta de baixo valor e que desconsidera as melhores evidências no cuidado médico.

ATIVIDADES

4. Leia as afirmativas a seguir sobre a Choosing Wisely.

I. O lema adotado de que menos é mais remete aos excessos feitos no cuidado à saúde das pessoas.

II. Debate sobre as práticas que potencialmente não agregam valor ao cuidado dos pacientes, porém continuam sendo feitas, mesmo que não tenham o devido respaldo científico ou mesmo em situações da prática em que agregam pouco ou nenhum valor à saúde daquele paciente.

III. Provoca a pensar sobre coisas que fazemos sem nenhuma razão.

IV. Considera que os custos monetários podem ser difíceis de serem mensurados, além disso, devem ser pensados em camadas.

Quais estão corretas?

A) Apenas a I, a II e a III.

B) Apenas a I, a II e a IV.

C) Apenas a I, a III e a IV.

D) Apenas a II, a III e a IV.

Confira aqui a resposta

Resposta incorreta. A alternativa correta é a "A".


Nas descrições do professor Christopher Moriates, citando The savings illusion — Why clinical quality improvement fails to deliver bottom-line results (Rauh e colaboradores), os custos monetários ainda podem ser difíceis de serem mensurados, além disso, devem ser pensados em camadas.

Resposta correta.


Nas descrições do professor Christopher Moriates, citando The savings illusion — Why clinical quality improvement fails to deliver bottom-line results (Rauh e colaboradores), os custos monetários ainda podem ser difíceis de serem mensurados, além disso, devem ser pensados em camadas.

A alternativa correta é a "A".


Nas descrições do professor Christopher Moriates, citando The savings illusion — Why clinical quality improvement fails to deliver bottom-line results (Rauh e colaboradores), os custos monetários ainda podem ser difíceis de serem mensurados, além disso, devem ser pensados em camadas.

5. “Os ___________ são aqueles geralmente relacionados a episódios de cuidado (como os de medicações, suprimentos durante uma internação). Os ___________ englobam os que podem variar moderadamente (como sessões de fisioterapia, salários, tempo de sala cirúrgica e equipamentos). Os ___________ referem-se àqueles não alterados a curto prazo (como faturamento, sobrecarga organizacional e finanças).” Assinale a alternativa que preenche corretamente as lacunas.

A) Custos mistos — custos fixos — custos variáveis.

B) Custos fixos — custos variáveis — custos mistos.

C) Custos variáveis — custos mistos — custos fixos.

D) Custos pendentes — custos fixos — custos variáveis.

Confira aqui a resposta

Resposta incorreta. A alternativa correta é a "C".


Os custos variáveis são aqueles geralmente relacionados a episódios de cuidado (como os de medicações, suprimentos durante uma internação). Os custos mistos englobam os que podem variar moderadamente (como sessões de fisioterapia, salários médicos, tempo de sala cirúrgica e equipamentos). Os custos fixos referem-se àqueles não alterados a curto prazo (como faturamento, sobrecarga organizacional e finanças).

Resposta correta.


Os custos variáveis são aqueles geralmente relacionados a episódios de cuidado (como os de medicações, suprimentos durante uma internação). Os custos mistos englobam os que podem variar moderadamente (como sessões de fisioterapia, salários médicos, tempo de sala cirúrgica e equipamentos). Os custos fixos referem-se àqueles não alterados a curto prazo (como faturamento, sobrecarga organizacional e finanças).

A alternativa correta é a "C".


Os custos variáveis são aqueles geralmente relacionados a episódios de cuidado (como os de medicações, suprimentos durante uma internação). Os custos mistos englobam os que podem variar moderadamente (como sessões de fisioterapia, salários médicos, tempo de sala cirúrgica e equipamentos). Os custos fixos referem-se àqueles não alterados a curto prazo (como faturamento, sobrecarga organizacional e finanças).

Conclusão

A importância de todas as discussões apresentadas neste capítulo pode ser percebida em diversas esferas e por múltiplas perspectivas.20 Para os pacientes, questionar sobre o efeito das intervenções recomendadas por médicos e outros profissionais de saúde ainda não faz parte da cultura da maioria.

Muitas vezes, o pensamento predominante é de que mais intervenções se traduzem em melhor cuidado, ou seja, de que pedir inúmeros exames e/ou prescrever diversos remédios significa que os pacientes são cuidados de maneira mais assertiva, afinal, foi o que os profissionais de saúde ensinaram ao longo do tempo às pessoas.

No entanto, sabe-se que os testes possuem especificidades e sensibilidades variáveis e que a terapêutica muitas vezes precisa ser embasada por estudos que comprovem a sua eficácia (caso contrário, a fragilidade da mente faz associações de benefício/malefício que muitas vezes não condizem com a realidade e prometem muito mais do que são capazes de cumprir; apenas ECRs são capazes de mostrar isso claramente).

Mesmo assim, cada indivíduo é particular e deve ter sua história individualizada, o que requer lidar com a incerteza das situações e com o fato de que nem sempre há um diagnóstico final para determinado paciente, eventualmente sem conseguir explicar por que alguém se beneficiou tanto com certa medicação — afinal os seres são organismos complexos que dependem de muitas variáveis para mostrar um resultado, e os estudos que buscam afastar as variáveis de confusão continuam sendo o método mais assertivo para avaliar essas dúvidas de maneira objetiva.

Perguntas como “o que isso vai fazer por mim?” ou “o que vou ganhar e/ou perder com isso?” merecem respostas particulares e individuais, considerando que mais intervenções nem sempre se traduzem em melhor cuidado, ou seja, que mais nem sempre é melhor. Sabe-se que os pacientes muitas vezes não questionam ativamente os profissionais de saúde sobre as opções terapêuticas e a necessidade verdadeira de investigar determinada condição, geralmente apenas seguindo as orientações, acreditando que terão benefícios e bem-estar ao final do processo.

De qualquer maneira, é responsabilidade dos médicos garantir que as expectativas de cuidado sejam alinhadas, deixando claro, sempre que solicitado, o que se espera acrescentar e agregar à saúde dos pacientes, incentivando-os a questionar sempre que quiserem.

Para os profissionais de saúde e o sistema de saúde, há um aumento constante na complexidade do cuidado em saúde, com novos medicamentos, dispositivos médicos, tecnologias e descobertas. Ao mesmo tempo, ocorre uma discrepância muito grande nos padrões de cuidado, com intensidade e qualidade de serviços variando enormemente entre diferentes regiões.

Também se percebe que as informações trazem muitas incertezas para a prática, com pesquisas clínicas e biomédicas pouco efetivas (embora surjam em larga escala, com cerca de 2 mil publicações científicas, 75 ensaios clínicos e 11 revisões sistemáticas sendo produzidas todos os dias), pobre disseminação de práticas baseadas em evidência e falta de incentivo ao uso dessas evidências para a melhoria do cuidado.

De certo modo, está-se sempre em busca de lidar com as ince/rtezas, imaginando-se certos das próprias conclusões e indicações. Como William Osler (médico canadense por muitos reconhecido como pai da medicina moderna) disse: “Medicine is a science of uncertainty and an art of probability”21 (“a medicina é a ciência da incerteza e a arte da probabilidade”, em tradução livre).

Assim, a incerteza deve ser tratada como sempre presente em meio à prática em saúde, afinal, os seres são complexos, as possibilidades diagnósticas e terapêuticas são múltiplas e a humildade do pensamento é fundamental nesse momento. Assim como Mark Twain disse certa vez: “O que nos causa problemas não é o que não sabemos. É o que temos certeza de que sabemos e que, ao final, não é verdade”.22

Para os estudantes da área da saúde, ainda não está claro o papel do ensino sobre o cuidado em saúde baseado em alto valor no currículo da graduação médica, nem mesmo se o impacto disso é (ou seria) amplo e sustentado, impactando os hábitos médicos de solicitar muitos exames. Também não se sabe se esse ensino se traduz em redução dos custos em cuidados de saúde ou se o cuidado baseado em valor afeta as percepções de cuidado dos pacientes e a sua relação com os médicos e a equipe de saúde como um todo.

De qualquer forma, para que essas discussões abordadas neste capítulo cheguem aos estudantes, uma das possibilidades é a de que outros alunos sejam disseminadores da importância desses debates, pouco falados na graduação.

Assim, espera-se que o pensamento sobre excessos desnecessários muitas vezes praticados seja constantemente percebido e eventualmente questionado pelos futuros profissionais em saúde, considerando a importância do cuidado baseado em alto valor e de assegurar segurança aos pacientes, melhorando cada vez mais o ensino e os serviços prestados pelo sistema de saúde como um todo.

Atividades: Respostas

Atividade 1 // Resposta: D

Comentário: A dexametasona foi a primeira medicação utilizada para pacientes internados com COVID-19 com efeito real na prática clínica diária, com o estudo RECOVERY em junho de 2020 (Matthay e Thompson). Certamente, diante de um paciente como o do caso 2, há forte recomendação de uso de corticoide para reduzir a tempestade inflamatória nas fases tardias dessa doença. Contudo, a hipótese fisiopatológica não é suficiente para a prescrição de um medicamento, caso contrário, não seria necessária a realização de ECRs, os quais aplicam o conceito testado de maneira a eliminar diversos vieses e fatores confundidores possíveis. Embora confirmada a eficácia do medicamento para COVID-19, cabe avaliar o quão relevante é na prática.

Atividade 2 // Resposta: A

Comentário: Precisam ser tratados 33 pacientes para que 1 seja beneficiado. Mesmo o melhor fármaco até então descoberto (e amplamente disponível) para o tratamento da COVID-19 salva 1 entre 33 indivíduos. Segundo a revisão da COCHRANE, o RR = 0,89, RAR = 3%, NNT = 33 (Wagner e colaboradores).

Atividade 3 // Resposta: C

Comentário: Talvez a primeira parte da questão fosse de conhecimento comum. Sabe-se que o corpo humano é um organismo complexo, com as células de cada órgão possuindo as próprias capacidades de multiplicação celular, bem como os diferentes tipos de tumores possuindo diferentes evoluções de acordo com as mutações genéticas sofridas.

Atividade 4 // Resposta: A

Comentário: Nas descrições do professor Christopher Moriates, citando The savings illusion — Why clinical quality improvement fails to deliver bottom-line results (Rauh e colaboradores), os custos monetários ainda podem ser difíceis de serem mensurados, além disso, devem ser pensados em camadas.

Atividade 5 // Resposta: C

Comentário: Os custos variáveis são aqueles geralmente relacionados a episódios de cuidado (como os de medicações, suprimentos durante uma internação). Os custos mistos englobam os que podem variar moderadamente (como sessões de fisioterapia, salários médicos, tempo de sala cirúrgica e equipamentos). Os custos fixos referem-se àqueles não alterados a curto prazo (como faturamento, sobrecarga organizacional e finanças).

Referências

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Titulação dos autores

ALEXANDRE WILTON BISSOLI JÚNIOR // Graduando em Medicina pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Coordenador do Programa Students and Trainees Advocating for Resource Stewardship (STARS).

MARIANA LARANJO GONÇALVES // Graduanda em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenadora do Programa Students and Trainees Advocating for Resource Stewardship (STARS).

RENATO GORGA BANDEIRA DE MELLO // Geriatra Titulado pela Associação Médica Brasileira (AMB) e Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG). Professor do Departamento de Medicina Interna da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Corresponsável da Choosing Wisely Brasil. Orientador do Programa Students and Trainees Advocating for Resource Stewardship (STARS).

Como citar a versão impressa deste documento

Bissoli Júnior AW, Gonçalves ML, Mello RGB. Casos clínicos: Choosing Wisely Brasil. In: Sociedade Brasileira de Clínica Médica; Lopes AC, José FF, Vendrame LS, organizadores. PROTERAPÊUTICA Programa de Atualização em Terapêutica: Ciclo 11. Porto Alegre: Artmed Panamericana; 2023. p. 37–63. (Sistema de Educação Continuada a Distância, v. 3). https://doi.org/10.5935/978-65-5848-985-6.C0002

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