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CONHECIMENTOS E HABILIDADES DO FARMACÊUTICO PARA A ATUAÇÃO CLÍNICA EM FARMÁCIAS COMUNITÁRIAS

Tiago Marques dos Reis

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  • Introdução

As origens da profissão farmacêutica não são bem conhecidas, mas se sabe que, ao longo da história, esse ofício passou por três fases distintas.1,2 Na Fase Tradicional, os antigos farmacêuticos, popularmente conhecidos como boticários, produziam o medicamento e acompanhavam o tratamento até que a saúde do paciente fosse restabelecida, tendo, por isso, um papel social bem definido.

Entretanto, em meio ao advento industrial em meados do século XX, a indústria farmacêutica passou a atrair os profissionais, que, assim, distanciaram-se do contato com o usuário do medicamento. Além disso, as mudanças sociais instituídas pelo ideal capitalista que se consolidava nessa época contribuíram para que o medicamento deixasse de ser visto apenas como uma estratégia terapêutica e se tornasse um bem de consumo. Consequentemente, a migração do profissional para a indústria foi intensificada, e as práticas varejistas no âmbito das farmácias foram favorecidas. Esses fatos caracterizaram o início da Fase de Transição.1,2

Contudo, a perda de identidade e de atribuições profissionais, motivada pelo aumento da produção de medicamentos em escala industrial, a tendência de obsolescência das formulações magistrais e as restrições impostas à prática clínica pelos órgãos representativos da classe farmacêutica norte-americana, nessa época, geraram forte insatisfação entre farmacêuticos hospitalares e estudiosos da Universidade de São Francisco, nos Estados Unidos.

Esse descontentamento dos farmacêuticos hospitalares e dos estudiosos fundamentou a criação de uma nova linha de pensamento, intitulada Farmácia Clínica, que pregava a aproximação entre farmacêutico, paciente e equipe de saúde, visando obter resultados positivos do tratamento medicamentoso.

No intuito de ampliar a disseminação desse movimento para além dos hospitais, pesquisadores insistiam que o farmacêutico deveria estreitar o contato com o paciente, oferecendo-lhe a atenção necessária para garantir que o uso do medicamento ocorresse de forma segura e racional.1

Consoante a isso, Charles Hepler e Linda Strand publicaram, em 1990, o primeiro trabalho pregando uma nova filosofia de prática, centrada no usuário de medicamentos, utilizando, pela primeira vez, a expressão Pharmaceutical Care (traduzido para o português como Atenção Farmacêutica ou Cuidado Farmacêutico), o que inaugurou uma nova fase na profissão farmacêutica: a Fase de Cuidado.1

Na Fase de Cuidado, que corresponde ao atual momento histórico, há a contemplação teórica do farmacêutico como profissional de saúde, em um esforço de resgatar o seu envolvimento com o processo de cuidado e o reconhecimento social característicos de outrora. O farmacêutico, nesse contexto, emerge como responsável por promover ações em educação dirigidas à comunidade e contribuir para a salvaguarda da saúde pública.1,3

A recente reestruturação buscada para a concepção do “ser farmacêutico” se justifica, entre outros motivos, pela necessidade de se atribuir a um profissional com conhecimentos e habilidades específicos o compromisso de racionalizar a farmacoterapia, sobremaneira em um cenário em que os recursos financeiros são demasiadamente limitados e o uso inadequado dos medicamentos é considerado problema de saúde pública mundial.1,3

Um estudo farmacoeconômico4 realizado no Rio Grande do Sul mostrou que 3 em cada 5 problemas relacionados a medicamentos identificados em pacientes atendidos no pronto-socorro de um hospital universitário eram considerados evitáveis, o que poderia gerar uma economia de quase R$ 4,5 milhões para o sistema de saúde.

Estudos anteriores5,6 evidenciaram situação semelhante: 36% das visitas aos pronto atendimentos estão relacionadas a problemas na farmacoterapia e 70% desses problemas são considerados evitáveis com a atuação do farmacêutico clínico. Nesse sentido, observa-se também que os gastos do Ministério da Saúde (MSMinistério da Saúde) com a aquisição de medicamentos têm crescido progressivamente nas últimas duas décadas.7

Em 2003, por exemplo, investiu-se R$ 1,9 bilhões na compra desses insumos, valor que ultrapassou os R$ 14 bilhões em 2015 (um aumento de 736%), devido a fatores como o aumento da expectativa de vida, a diminuição da mortalidade infantil, as políticas públicas em saúde e os programas de acesso aos medicamentos.7 Ainda assim, a saúde pública no país continua sofrendo com a tripla carga das doenças, com o desabastecimento das farmácias, com a alta demanda de pacientes nas filas à espera de atendimento e com a falta de recursos para a oferta do cuidado integral à população.

Sabe-se que, em 2017, foram realizados, no país, 123.206.256 atendimentos de urgência e emergência na atenção primária à saúde (APSatenção primária à saúde) e na atenção especializada, o que gerou um gasto de R$ 1.267.424.195,99.8 Isso representou 1,7 atendimento de urgência e emergência por habitante/ano e o consumo de recursos que ajudariam os estados e os municípios no abastecimento das farmácias básicas de todos o país, considerando a contrapartida federal no financiamento do Componente Básico da Assistência Farmacêutica (CBAF) no ano de 2017.

Sabendo-se que até 24% das internações hospitalares são provenientes dos atendimentos de emergência5 e que o custo médio das internações em dezembro de 2017 foi de R$ 1.331,86, o Sistema Único de Saúde (SUSSistema Único de Saúde) poderia ter economizado mais de R$ 9,9 milhões em 2017 se o Cuidado Farmacêutico estivesse sendo realizado de forma efetiva e capaz de evitar a totalidade de problemas existentes na farmacoterapia, segundo o cálculo realizado com base na estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o número de habitantes no Brasil, em 2017, e a quantidade de atendimentos de urgência e emergência informados no Departamento de Informática do SUSSistema Único de Saúde (DataSUS) nesse mesmo período.

Obviamente, evitar todos os problemas na farmacoterapia é uma meta audaciosa e quase inatingível. Ainda assim, a presente análise demonstra o quanto a realização dos serviços clínicos pelo farmacêutico pode ser vantajosa à economia de recursos, sem contar os possíveis benefícios para a qualidade de vida da população.5

Exemplos como esses justificam o investimento na promoção do uso racional dos medicamentos e na consolidação do Cuidado Farmacêutico, inclusive nas farmácias comunitárias, com a inserção do farmacêutico na equipe de saúde.

O Cuidado Farmacêutico é definido pelo Conselho Federal de Farmácia (CFFConselho Federal de Farmácia) como o

“modelo de prática que orienta a provisão de diferentes serviços farmacêuticos diretamente destinados ao paciente, à família e à comunidade, visando à prevenção e resolução de problemas da farmacoterapia, ao uso racional e ótimo dos medicamentos, à promoção, à proteção e à recuperação da saúde, bem como à prevenção de doenças e de outros problemas de saúde”.9

O Cuidado Farmacêutico tem protagonizado discussões em relação às tendências para a área de farmácia no Brasil, sobremaneira após a regulamentação das atribuições clínicas desse profissional, da farmácia como estabelecimento de saúde e da publicação das novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Farmácia em outubro de 2017.2,9

Esse movimento tem contribuído para a redefinição do papel do farmacêutico na sociedade e incentivado uma reestruturação do seu processo de trabalho por meio da oferta de serviços clínicos. Dessa forma, observa-se a progressiva inserção do Brasil na Fase de Cuidado da profissão e no alinhamento do país à revolução clínica internacional deflagrada nos Estados Unidos na década de 1960.2,9

Nove serviços clínicos são considerados no âmbito do Cuidado Farmacêutico, a saber:10

 

  • rastreamento em saúde;
  • educação em saúde;
  • manejo de problema de saúde autolimitado;
  • monitorização terapêutica de medicamentos;
  • conciliação de medicamentos;
  • revisão da farmacoterapia;
  • gestão da condição de saúde;
  • acompanhamento farmacoterapêutico;
  • dispensação de medicamentos.

A implantação desses serviços clínicos no Cuidado Farmacêutico, tanto no setor público quanto no privado, requer estratégias como planejamento, pactuação com gestores, capacitação dos profissionais e conscientização da equipe de saúde sobre os objetivos de cada serviço.

Algo importante a se frisar, nesse ponto da reflexão, é que a atuação do farmacêutico no âmbito do cuidado não o isenta de desempenhar atividades relacionadas à tecnologia de gestão dos medicamentos, inseridas no contexto das farmácias (seleção, programação, aquisição, armazenamento e distribuição).11,12

O desempenho das atividades de tecnologia de gestão dos medicamentos é desejável à medida que favorece a garantia da qualidade dos medicamentos e assegura a disponibilidade desses produtos nas farmácias, elementos fundamentais para que o tratamento medicamentoso prescrito ao paciente seja exitoso. Porém, as atividades clínicas têm uma interconexão com os demais serviços que integram o ciclo logístico da Assistência Farmacêutica e devem ser realizadas satisfatoriamente para atender às necessidades farmacoterapêuticas dos pacientes.11,12

Isto posto, pode-se ponderar que o sucesso na gestão técnica do medicamento (ciclo logístico) não necessariamente se traduz em êxito na farmacoterapia devido a um importante nó crítico, o qual também compromete o novo perfil de atuação que se espera do farmacêutico nas farmácias comunitárias: a falta de conhecimento e de habilidades clínicas.13–15

Estudos realizados nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste do Brasil mostraram que 4 a cada 5 farmacêuticos comunitários do setor privado não tinham conhecimento satisfatório para a realização da dispensação de medicamentos e 41% desses profissionais também não tinham domínio sobre outras questões envolvendo o Cuidado Farmacêutico.13–15 Apesar disso, 73,8% desses farmacêuticos afirmaram realizar o acompanhamento farmacoterapêutico. Como é possível um profissional executar determinado serviço ou atividade sobre a qual não tenha conhecimento nem habilidades para a adequada execução?

Segundo o CFFConselho Federal de Farmácia,16,17 o Brasil tem mais de 203 mil farmacêuticos, e as farmácias do setor privado representam aproximadamente 67,5% do total de estabelecimentos farmacêuticos no território nacional. Partindo do pressuposto de que 60% dos farmacêuticos atuam em farmácias comunitárias,18 fica evidenciada a facilidade de acesso da população aos medicamentos e ao profissional farmacêutico no sistema privado.

Existem quase 600 cursos presenciais, além dos cursos na modalidade de ensino a distância (EaD), de farmácia no país, que formam 18 mil novos farmacêuticos a cada ano.18 A qualidade desses cursos, entretanto, deixa dúvidas quanto à competência do egresso que é preparado para ocupar as vagas para farmacêutico no mercado de trabalho.17

De acordo com o índice geral de cursos (IGC) do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), instrumento para avaliar a qualidade das instituições de educação superior no país, 20% dos cursos de Farmácia tinham baixo padrão de qualidade em 2012 e 28% deles sequer eram reconhecidos pelo Ministério da Educação (MEC).17

As lacunas no conhecimento e nas habilidades dos profissionais verificadas até mesmo na realização de serviços como a dispensação de medicamentos, realizada nas farmácias comunitárias desde seus primórdios, comprometem a identificação das reais necessidades farmacoterapêuticas dos pacientes, a oferta de outros serviços clínicos e a reconfiguração da atuação do farmacêutico nesse cenário.19,20

As distorções geradas pela transmissão de informações equivocadas enfraquecem o verdadeiro papel do farmacêutico e comprometem a qualidade do cuidado, desfavorecendo a promoção do uso racional dos medicamentos em farmácias.19,20

Diante do exposto, fica evidente a importância de que o farmacêutico ou estudante de Farmácia desenvolva os conhecimentos e as habilidades necessárias para a atuação esperada na Fase de Cuidado em que a profissão farmacêutica se encontra, sobretudo para obter êxito no desenvolvimento do trabalho no âmbito das farmácias comunitárias.

  • Objetivos

Ao final da leitura deste artigo, o leitor será capaz de

 

  • identificar os serviços farmacêuticos clínicos passíveis de serem realizados no âmbito das farmácias comunitárias;
  • avaliar a legislação aplicada à atuação clínica em farmácias comunitárias;
  • reconhecer algumas das principais habilidades que o farmacêutico precisa desenvolver para a atuação clínica no âmbito das farmácias comunitárias.
  • Esquema conceitual
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