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TRANSPLANTE DE FÍGADO

Autores: Marcelo Gonçalves Sousa, Jorge Roberto Marcante Carlotto, Eduardo Figueiredo Benedetti, Marcelo Moura Linhares
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  • Introdução

As hepatopatias graves compreendem um grupo de doenças que acomete primária ou secundariamente o fígado, apresentando evolução aguda ou crônica e ocasionando alteração estrutural progressiva extensa e intensa, podendo acarretar grave deficiência funcional e alta mortalidade. Essas doenças têm amplo espectro de etiologias:

 

  • genéticas;
  • congênitas;
  • autoimunes;
  • infecciosas;
  • tóxicas;
  • iatrogênicas;
  • traumáticas;
  • neoplásicas.

O transplante hepático ortotópico (implantado no mesmo local do removido) é o tratamento de escolha para pacientes com: 1

 

  • hepatopatias crônicas em estágio final,
  • insuficiência hepática fulminante,
  • carcinoma hepatocelular (HCCcarcinoma hepatocelular, do inglês hepatocellular carcinoma).

Os primeiros relatos do transplante hepático são de Welch, que, em 1955, implantou um fígado de forma heterotópica na pelve de um cão. Cannon, em 1956, implantou o fígado de forma ortotópica, também em cão, mas ambos sem sucesso. Starzl e colaboradores, em 1959, descreveram técnicas de hepatectomias e desenvolveram a perfusão hipotérmica intraportal com Ringer lactato e solução de Collins, que poderia manter os fígados preservados por 12 horas.2

Em 1963, Starzl realizou o primeiro transplante de fígado em humano, em uma criança de 3 anos com atresia de vias biliares, que evoluiu para óbito por sangramento durante o procedimento. Ele ainda realizou mais 2 transplantes com mortalidade ao sétimo e ao 22.o dias. Entretanto, em 1967, Starzl conseguiu êxito, realizando o primeiro transplante com sobrevida tardia, tendo o paciente sobrevivido por 1 ano e 6 meses.2

Inúmeras descobertas e inovações surgiram nos anos seguintes, viabilizando e sedimentando as bases atuais do transplante hepático, entre elas merecem destaque:3

 

  • a introdução de drogas imunossupressoras,
  • a utilização de líquido de preservação,
  • as melhorias técnicas.

Quanto à introdução de drogas imunossupressoras, a ciclosporina foi introduzida em estudos clínicos por Calne, em 1979, para o transplante renal. Starzl e colaboradores, em 1981, associaram a ciclosporina à prednisona e, posteriormente, à azatioprina, obtendo excelentes resultados, levando a uma melhor aceitação do transplante hepático como tratamento para a doença hepática terminal. No entanto, os melhores resultados foram obtidos com a introdução do tacrolimus, na década de 1990, que diminuiu consideravelmente os níveis de rejeição.4

 

Com relação à utilização de líquido de preservação, a solução UK-belzer, apresentada em 1987 pela Universidade de Wisconsin, possibilitou melhoria na qualidade dos enxertos e transporte entre distâncias maiores, aumentando, consequentemente, a oferta de enxertos hepáticos e o número de transplantes realizados. Quanto às melhorias técnicas, a cirurgia convencional no receptor inclui a hepatectomia total com remoção do segmento retro-hepático da veia cava inferior, exigindo a utilização de uma derivação venovenosa externa temporária (“shunt” portocavajugular) durante a fase anepática (quando o paciente está sem fígado).5

 

O aumento da experiência das equipes transplantadoras e o maciço investimento em pesquisas possibilitaram o desenvolvimento da técnica chamada piggy-back, em que o fígado é removido da cavidade abdominal com a preservação da veia cava inferior, o que mantém o fluxo de retorno venoso dos membros inferiores e dos rins para o coração, contribuindo para estabilidade hemodinâmica durante a fase anepática, menor incidência de insuficiência renal, bem como diminuição dos riscos de complicações embólicas acidentais, pois esta técnica dispensa as bombas de circulação extracorpóreas.5

A técnica “piggy-back” foi inicialmente utilizada em cães por Fonkalsrud e colaboradores e no transplante clínico por Calne e colaboradores. Porém, foi somente a partir dos trabalhos de Tzakis e colaboradores que foi amplamente difundida. Inicialmente preconizada para pacientes pediátricos hemodinamicamente instáveis, a técnica “piggy-back” foi rapidamente estendida a todos os receptores pediátricos e adultos, constituindo-se, atualmente, na técnica cirúrgica mais utilizada pelos centros transplantadores de fígado em todo o mundo.5

A esses avanços associaram-se melhorias e refinamentos das técnicas anestésicas e operatórias, menores taxas de transfusão, menor tempo operatório e aperfeiçoamentos dos cuidados intensivos. Estas mudanças possibilitaram resultados de sobrevida próximos a 90% em 1 ano.6

Outro dos grandes marcos no desenvolvimento dos transplantes foi o reconhecimento do transplante hepático pelo Instituto Nacional Americano de Saúde, em 1983, como modalidade terapêutica para doentes com doença hepática terminal e não somente como cirurgia experimental. Assim, deve ser indicado para os portadores de doença hepática crônica e irreversível, sem alternativas tradicionais de tratamento, desde que não haja contraindicações.7

No Brasil, a Universidade de São Paulo realizou o primeiro transplante de fígado da América Latina em 1968, com sobrevida de apenas 7 dias.7 Mais tarde, em 1985, o professor Silvano Raia realizou outro transplante hepático, com sobrevida de 13 meses e, em 1988, junto com alguns colaboradores, revolucionou a técnica de transplante em todo o mundo, descrevendo o primeiro transplante intervivos de fígado do mundo.

Atualmente, mais de 50 anos após o primeiro transplante de fígado, com mais de 160 mil transplantes realizados segundo a UNOSUnited Network for Organ Sharing (United Network for Organ Sharing — empresa sem fins lucrativos que controla a alocação de órgãos nos Estados Unidos), com resultados e técnicas bem estabelecidos, enfrenta-se o problema da menor oferta de doadores cadáveres, culminando em listas de espera cada vez maiores.

 

Frente a essa escassez de órgãos surgem novas técnicas para otimizar esta desproporção, como a utilização de fígados marginais, transplante dominó, repique ou sequencial, “split liver” ou fígado bipartido, utilização de doadores vivos, ou uma associação de todas estas técnicas, nos transplantes ditos “um fígado para dois”, “para três” ou “para quatro receptores”.8

Sendo assim, fica claro a necessidade de um melhor esclarecimento e conscientização da população e dos profissionais de saúde quanto à doação de órgãos, aprimoramento nos processos de distribuição de órgãos, seleção criteriosa dos pacientes para espera em lista de transplante e melhor utilização dos órgãos disponíveis.9

  • Objetivos

Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de:

 

  • citar as principais indicações e contraindicações do transplante de fígado;
  • discorrer sobre as modalidades de transplante de fígado;
  • discutir os critérios de escolha dos doadores e receptores;
  • descrever os principais pontos da técnica operatória na captação (cirurgia no doador), na preparação dos enxertos (cirurgia de mesa) e no implante dos órgãos (cirurgia no receptor);
  • discutir as principais complicações pós-operatórias do transplante hepático;
  • citar as principais terapêuticas imunossupressoras;
  • apontar os resultados do transplante hepático.
  • Esquema conceitual
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