■ Introdução
O conceito da lei dos cuidados inversos foi desenvolvido por Tudor Hart, em 1971, no Reino Unido.¹ O autor recorreu a estudos de base populacional e às estatísticas demográficas e de saúde, realizados entre 1934 e 1968, na Inglaterra e no País de Gales, onde comparou as áreas geográficas e as diferentes classes sociais. Ele concluiu que as pessoas que mais necessitavam de cuidados de saúde eram aquelas a quem menos eram oferecidos e que menos os utilizavam.
O autor retrata a época de transição no sistema de saúde britânico, com a implantação do National Health Service (NHSNational Health Service), em 1948, um serviço público nacional, gratuito no momento da utilização, disponível para todos, financiado por impostos, responsável por prover todos os cuidados de saúde necessários à população. Antes da criação do NHSNational Health Service, os serviços de saúde eram privados em sua maioria ou restritos aos trabalhadores, no que se denominava sistema de clubes. Nesse sistema, os trabalhadores tinham acesso aos serviços contratados por seu empregador, semelhante ao modelo das caixas de pensão, que existia no Brasil, na mesma época.
A assistência médica nos serviços de saúde era feita pelos General practitioners (GPGeneral practitioners), equivalentes aos médicos de família e comunidade (MFCmédico de família e comunidades) no Brasil, que tinham uma lista de pacientes sob seus cuidados. Esses médicos recebiam uma pequena quantia por cada pessoa inscrita em sua lista, cujo tamanho variava bastante em função da região em que ele se encontrava. A distribuição desses médicos também era retrato da iniquidade, pois as regiões mais povoadas e ricas economicamente possuíam mais médicos do que as áreas mais distantes e pobres.
Nas regiões ricas, os GPGeneral practitioners tinham listas de pacientes menores e atendiam em centros de saúde com melhor infraestrutura. Um estudo realizado por Ann Cartwright² mostrou que, naquela época, aproximadamente 80% dos consultórios nas áreas de classe operária foram construídos antes de 1900 e somente 5% após 1945. Nas áreas de classe média, menos de 50% dos consultórios foram construídos antes de 1900 e 25% após 1945. O estudo demonstrava que as pessoas de classe média, que possuíam maior grau de instrução formal, tinham mais acesso aos serviços de saúde. Além disso, mais GPGeneral practitioners em áreas de classe média tinham lista com menos de 2.000 pessoas do que os colegas atuando em áreas de classe trabalhadora, e poucos tinham uma lista com mais de 2.500 pessoas, o que também era mais frequente entre os colegas que atuavam nas regiões mais pobres.1
Tudor Hart1 mostra que, embora ainda houvesse diferença significativa entre as regiões do País, o NHSNational Health Service vinha sendo capaz de reduzir essa diferença. Portanto, segundo Tudor Hart, a implantação de um sistema de saúde universal, com um financiamento de base solidária (por meio de impostos) e com um modelo de atenção fundamentado em serviços, com as características próprias dos serviços de atenção primária à saúde (APSatenção primária à saúde) se mostrava uma importante solução para reduzir a lei dos cuidados inversos. Ou seja, a simples proposição de um serviço de saúde que imponha regras ao livre mercado já se mostra capaz de produzir melhores resultados.
Entretanto, a oposição ao NHSNational Health Service ainda se fazia presente. Uma das principais oposições vinha dos hospitais de Londres, ligados às atividades de ensino, nos quais a elite médica formava os futuros médicos da sua maneira. Tal fato mostra o quão importante é a questão da formação, particularmente, do modelo de pensamento adotado no processo de formação, na construção de um sistema de saúde menos desigual.
Apesar de os grandes avanços alcançados pelo NHSNational Health Service, ainda hoje persistem desigualdades, o que demonstra que os esforços para evitar que a lei dos cuidados inversos se aplique, dependem de persistência e de vigilância contínua.3
■ Objetivos
Ao final da leitura deste artigo, o leitor será capaz de
- ■ reconhecer o contexto da época em que surgiu o conceito da lei dos cuidados inversos, no Reino Unido, e a relação com o atual momento brasileiro;
- ■ ver como determinadas práticas nos serviços de APSatenção primária à saúde podem implicar a lei dos cuidados inversos;
- ■ identificar situações na prática clínica do MFCmédico de família e comunidade nas quais a lei dos cuidados inversos pode se fazer presente;
- ■ ver como os princípios da medicina de família e comunidade e suas aplicações na prática clínica podem ser instrumentos que auxiliam no desenvolvimento de uma prática mais equânime.
■ Esquema conceitual