- Introdução
Segundo Menkes e colaboradores,1 as doenças desmielinizantes (DDdoença desmielinizantes) constituem-se em um grupo de afecções inflamatórias imunomediadas que afetam o sistema nervoso central (SNCsistema nervoso central) lesando a mielina normalmente formada, com destruição parcial ou total dos axônios e neurônios do SNCsistema nervoso central. Isso se correlaciona com a extensão do dano funcional permanente ou sequelas (disseminação espacial), à medida que a doença persiste ou entra novamente em atividade inflamatória de forma sintomática aparente (surto) ou não (disseminação temporal).2
Quando se manifestam na infância, as DDdoença desmielinizantes ocorrem em uma fase em que o SNCsistema nervoso central se encontra ainda em desenvolvimento,3 sobretudo no que diz respeito à mielinização. Desse modo, o diagnóstico das DDdoença desmielinizantes é complexo e pode necessitar de acompanhamento prolongado, mesmo por anos, até concluir-se frente a qual entidade nosológica se está, o que é fundamental para a definição do plano terapêutico em longo prazo. Pelo mesmo motivo, enfatiza-se a necessidade da ampliação do diagnóstico diferencial das DDdoença desmielinizantes, que é bem mais extenso do que o preconizado para a faixa etária adulta.4
Na idade pediátrica, as DDdoença desmielinizantes apresentam evolução distinta quando comparada com a dos adultos, e os pacientes atingem uma fase avançada da enfermidade em idade mais jovem. Em pelo menos 50% dos casos de esclerose múltipla pediátrica (EMPesclerose múltipla pediátrica), a evolução para a fase secundariamente progressiva leva cerca de 20 anos (10 anos a mais do que a doença dos adultos). Por sua vez, os pacientes pediátricos atingem essa fase 10 anos antes do que os adultos e adquirem incapacidades maiores (como perda da autonomia na marcha) em idade mais precoce.5
Por serem doenças incapacitantes em curto, médio e longo prazos com alta morbidade, as DDdoença desmielinizantes determinam prejuízo significativo na qualidade de vida dos pacientes, bem como de suas famílias, muitas vezes, também limitadas profissional e emocionalmente em razão da necessidade de hospitalizações frequentes.6
Os custos relacionados às doenças crônicas incluem gastos com os cuidados de saúde e toda as despesas invisíveis associadas, como:
- diminuição da esperança média de vida;
- condição de incapacidade;
- participação diminuída de alguns grupos mais vulneráveis;
- redução dos dias de trabalho;
- absentismo;
- desemprego;
- redução da qualidade de vida.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMSOrganização Mundial da Saúde), o aumento das doenças crônicas é uma epidemia invisível e causa subestimada de pobreza que impede o desenvolvimento econômico de muitos países.7
Com o avanço tecnológico na área da saúde, o surgimento de situações crônicas tem se tornado cada vez mais frequente na população, uma vez que as tecnologias são capazes de combater a morte clínica e tratar problemas muito graves, anteriormente fatais aos seres humanos. Nos últimos 30 anos, tem aumentado o número de indivíduos com limitações de suas funções e estruturas.8 O desenvolvimento de novos métodos diagnósticos e de medicações modificadoras do curso dessas doenças neuroinflamatórias tem permitido maior sobrevida dessa população.
Toda a aplicabilidade terapêutica tem como base os perfis de segurança, tolerabilidade e eficácia de ensaios clínicos em adultos, dada a escassez destes em idade pediátrica, o que é particularmente verdadeiro nas DDdoença desmielinizantes.4 Contudo, na atualidade, o cuidar transcende medicar o paciente: envolve tratá-lo holisticamente, visando à recuperação do seu estado de saúde integral e à melhoria da sua qualidade de vida e de sua família, de acordo com a OMSOrganização Mundial da Saúde.9
Com base nesse princípio, a Associação Americana de Fisioterapia (em inglês, American Physical Therapy Association [APTAAssociação Americana de Fisioterapia]) endossou o uso da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIFClassificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde) integrada à prática do fisioterapeuta.
A CIFClassificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde é um instrumento universal para a compreensão da saúde e da deficiência, tendo sido concebida para orientar a abordagem terapêutica do paciente, considerando os diferentes aspectos que os fisioterapeutas encontram na prática clínica diária.
O modelo da funcionalidade pode ser usado para descrever todos os aspectos da condição de saúde do paciente e para assegurar a abordagem holística para a gestão da prática clínica dos fisioterapeutas. Não existem estudos suficientes que destaquem o impacto do uso da CIFClassificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde em crianças e adolescentes que apresentem quadro clínico de DDdoença desmielinizante.
O presente artigo fundamenta, na perspectiva do cuidado ampliado em saúde, a aplicação do modelo da funcionalidade na abordagem fisioterapêutica das DDdoença desmielinizantes na infância e adolescência.
- Objetivos
Ao final da leitura deste artigo, o leitor será capaz de
- identificar as principais características das DDdoença desmielinizantes na infância e adolescência;
- aplicar o conceito de funcionalidade para crianças e adolescentes com DDdoença desmielinizantes;
- relacionar a aplicação da CIFClassificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde ao tratamento fisioterapêutico de crianças e adolescentes com DDdoença desmielinizantes;
- aplicar os princípios da funcionalidade em crianças e adolescentes com DDdoença desmielinizantes.
- Esquema conceitual