Entrar

CUIDADO FARMACÊUTICO AOS USUÁRIOS DE ANTIPSICÓTICOS

Gilda Angela Neves

Stela Maris Kuze Rates

epub-BR-PROFARMA-C4V3_Artigo1

Objetivos

Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de

 

  • elencar os transtornos nos quais os pacientes podem se beneficiar do uso de antipsicóticos;
  • reconhecer as principais classes de medicamentos antipsicóticos e os principais aspectos de sua farmacologia básica;
  • analisar mecanismos de ação, farmacocinética, interações medicamentosas e reações adversas dos antipsicóticos relacionados na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename);
  • descrever os principais sintomas da esquizofrenia e o estágio do tratamento em que o paciente pode se encontrar;
  • indicar os principais aspectos que devem ser observados no cuidado farmacêutico ao paciente com esquizofrenia;
  • considerar o papel do farmacêutico junto à equipe multidisciplinar de apoio ao paciente com transtornos psicóticos.

Esquema conceitual

Introdução

Cerca de 18 a 36% da população global sofre de transtornos mentais ao longo da vida, sendo que, em conjunto com o abuso de substâncias, as doenças mentais são responsáveis por cerca de 23% do total de anos vividos com deficiência.1,2

Transtornos mentais graves e persistentes (TMPs) referem-se a qualquer distúrbio que tenha um impacto contínuo e significativo ao longo da vida de um indivíduo, interferindo negativamente nos seus relacionamentos afetivos, no seu funcionamento social e na sua educação e subsistência, além de aumentar consideravelmente o risco de morte prematura.

Os TMPs incluem transtornos do espectro psicótico (entre eles, a esquizofrenia), transtorno bipolar e depressão maior grave e recorrente. De fato, existem dados que mostram que indivíduos que vivem com TMPs podem ter uma expectativa de vida menor do que a população em geral em até 20 anos.3

Para as pessoas que vivem com esquizofrenia, o risco de morte prematura é ainda maior, devido ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares e metabólicas, um dos principais efeitos adversos dos medicamentos antipsicóticos.4 Além disso, o tabagismo é até cinco vezes mais prevalente entre esses indivíduos, os quais também têm alta probabilidade de morrer por suicídio.4,5

Esses riscos são conhecidos e, em grande medida, evitáveis. Ainda assim, as pessoas que vivem com TMPs não recebem cuidados especiais de saúde em comparação com o atendimento ao público em geral.6

Entre os medicamentos utilizados no tratamento de TMPs, destacam-se os antipsicóticos pelo relevante papel que tiveram e têm na redução de internações psiquiátricas prolongadas ou permanentes, além da reinserção de pessoas com transtornos do espectro psicótico na sociedade, possibilitando o convívio familiar e o exercício de atividades criativas e produtivas. No entanto, o cuidado de indivíduos com esquizofrenia não se restringe ao uso de medicamentos, sendo muito mais amplo.

São múltiplos os aspectos envolvidos na gênese e no tratamento desses transtornos, e diversos estudos apontam a importância do acompanhamento contínuo de pacientes por equipes multiprofissionais, bem como suporte social e familiar.7,8

No Brasil, na virada dos anos 1980 para os 1990, surgiram os Centros de Atenção Psicossocial (CAPSs), os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPSs) e os Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAMs), com uma filosofia de atenção cotidiana que viabilizasse o tratamento dos pacientes, mesmo que bastante afetados, fora dos manicômios, com leitos apenas para situações de emergência.9

A proposta desse modelo, validado pela Lei Antimanicomial,9 é de que os indivíduos acometidos por transtornos mentais não sejam isolados e esquecidos em hospícios e, diferentemente dos ambulatórios, o tratamento não se constitua em uma simples prescrição médica periódica.

O modelo defende o tratamento de pacientes graves em regime aberto, vinculados à família, ao trabalho e a outras atividades, e é uma referência mundial no tratamento de transtornos mentais.10 No entanto, é importante salientar que a postura antimanicomial não é contra a internação, mas sim contra a internação como um modo de segregação permanente ao qual as pessoas eram submetidas no Brasil antes dos anos 1990.

A partir de 2017 ocorreu uma reformulação na política de saúde mental do País, a qual revalorizou o papel dos hospitais psiquiátricos, que voltaram a fazer parte da rede de atendimento. Essa nova política também incentivou a formação de enfermarias especializadas em atendimento psiquiátrico nos hospitais gerais.

O tema ainda é foco de intenso debate no meio profissional e na sociedade. A importância dos medicamentos antipsicóticos como um dos recursos a ser utilizado na estabilização e na busca de melhora da qualidade de vida dos pacientes é indiscutível. No entanto, a adesão ao tratamento farmacológico é considerada um desafio, em especial quando se trata desses pacientes.11,12

Cerca de 50% dos indivíduos com esquizofrenia e outros transtornos do espectro psicótico abandonam o tratamento pelas mais variadas causas, incluindo ineficácia.11,12

Os antipsicóticos constituem um grupo heterogêneo de fármacos, formado por classes químicas distintas e farmacologia bastante complexa tanto no que se refere ao mecanismo de ação quanto ao perfil de efeitos adversos. Esse fato, aliado à complexidade dos transtornos do espectro psicótico e aos inúmeros aspectos psicossociais envolvidos, exige atenção permanente de uma equipe multidisciplinar de saúde e individualização da terapia.6,13–18

Nesse contexto, vários trabalhos têm se dedicado a propor e avaliar o papel do farmacêutico na saúde mental.6,13–18 A maioria dos estudos enfoca o papel dos farmacêuticos como revisores de prontuários de medicamentos, resultados laboratoriais e prescrição de medicamentos, bem como provedores de educação farmacoterapêutica para pacientes e outros profissionais de saúde.

O principal uso clínico dos antipsicóticos é no tratamento dos transtornos do espectro psicótico ou transtornos do espectro da esquizofrenia. Segundo a quinta edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5),19 esses transtornos incluem:

 

  • transtorno esquizotípico — transtorno de personalidade caracterizado por sintomas psicóticos atenuados;
  • transtorno delirante — predominância de delírios;
  • transtorno psicótico breve e esquizofreniforme — que se diferenciam pela duração dos sintomas;
  • esquizofrenia — forma crônica dos transtornos psicóticos;
  • transtornos esquizoafetivos — em que o paciente também apresenta episódios depressivos e/ou maníacos.

Todos apresentam em comum alterações da percepção, do pensamento e do enfrentamento da realidade, as quais abrangem os seguintes domínios: delírios, alucinações, pensamentos e discurso desorganizados, denominados sintomas positivos, além de funções motoras alteradas ou grosseiramente desorganizadas, incluindo a possibilidade de desenvolvimento de catatonia.

Sintomas como embotamento afetivo, falta de iniciativa (avolição), dificuldade de sentir prazer (anedonia), chamados de sintomas negativos, são identificados na maioria dos pacientes com transtornos psicóticos — com exceção daqueles com transtorno psicótico breve —, porém são mais graves naqueles com esquizofrenia, ou seja, cronicamente afetados.

Alterações cognitivas, como prejuízos de atenção, memória e velocidade de processamento e de funções executivas, seguem o mesmo padrão de manifestação observado nos sintomas negativos. Todos os sintomas podem coexistir ou se manifestar em diferentes momentos, de forma mais ou menos perceptível e debilitante, dependendo da evolução do quadro.

A esquizofrenia, forma mais grave dos transtornos psicóticos, afeta cerca de 20 milhões de indivíduos mundialmente,5 com uma incidência anual média de 0,2 caso para cada mil habitantes, e prevalência de cerca de 1%.20 O primeiro episódio psicótico ocorre geralmente no final da adolescência e início da idade adulta, porém sintomas atenuados podem ser identificados mesmo em idades anteriores, sendo essa fase denominada período prodrômico.21

Essa observação apoia a hipótese de que a esquizofrenia é consequência de perturbações no desenvolvimento neuronal determinadas pela soma de fatores genéticos e insultos ambientais, sendo o surgimento dos sintomas psicóticos o estágio final dessas perturbações.22

Após o primeiro episódio psicótico, o paciente pode apresentar remissão dos sintomas em menos de um mês, caracterizando um transtorno psicótico breve, ou em até seis meses, uma característica dos pacientes com transtorno esquizofreniforme.

Se os sintomas permanecem por mais de seis meses ou se nesse período o paciente oscilar entre períodos de estabilização sintomática e retorno nas manifestações agudas (reincidência de episódios psicóticos), pode ser confirmado o diagnóstico de esquizofrenia.19 Dentro desse panorama, a esquizofrenia é especialmente debilitante por ser a forma crônica e mais grave de psicose e, por esse motivo, pode exigir tratamento farmacológico contínuo e prolongado.

Além dos transtornos psicóticos, outros usos dos antipsicóticos incluem o tratamento dos transtornos afetivos bipolares e da depressão maior, o controle de movimentos involuntários associados à doença de Huntington e à síndrome de Tourette, bem como o controle da agressividade e dos sintomas psicóticos secundários à doença de Parkinson e à doença de Alzheimer, uso este bastante controverso.

Em pacientes pediátricos, é comum a prescrição de antipsicóticos como auxiliares no tratamento do transtorno do espectro autista. Por fim, a clorpromazina, um antipsicótico clássico, também é utilizada como antiemético e no tratamento de soluços incontroláveis.23

Atualmente, no mercado norte-americano são comercializados 24 fármacos antipsicóticos. Destes, 16 possuem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e estão disponíveis no Brasil, além do zuclopentixol, da sulpirida e da amissulprida, que não são aprovados pela Food and Drug Administration (FDA).24

Apenas sete fármacos antipsicóticos estão listados na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename),24 sendo que dois fazem parte do componente básico (haloperidol e clorpromazina) e cinco do componente especializado (clozapina, olanzapina, quetiapina, risperidona e ziprasidona) da assistência farmacêutica.

Neste capítulo, serão apresentados um breve sumário do histórico e a farmacologia dos antipsicóticos, com ênfase naqueles constantes na Rename 2020, além de subsídios para o cuidado farmacêutico aos pacientes usuários de antipsicóticos, especialmente aqueles com esquizofrenia e outros transtornos psicóticos graves.

Este programa de atualização não está mais disponível para ser adquirido.
Já tem uma conta? Faça login