- Introdução
A relação da fisioterapia com as medicinas tradicionais e as práticas integrativas e complementares em saúde (PICSpráticas integrativas e complementares em saúde) está fortemente imbricada na história da profissão e remete às práticas terapêuticas utilizadas nos primórdios das grandes civilizações da Antiguidade (de 4.000 a.C a 395 d.C).
Segundo Rebelatto e Botomé,1 o movimento corporal humano e os agentes físicos da natureza já eram utilizados pelos povos clássicos orientais e ocidentais como recursos para o tratamento de “diferenças incômodas”, enfermidades e disfunções que acometem o indivíduo, e consistem na origem da cinesioterapia e de outros recursos fisioterapêuticos empregados na atualidade.
Na China, sob o governo do Imperador Amarelo (Huángdì 黃帝), utilizavam-se terapias como acupuntura, moxabustão, ventosas, raspagens (Gua Sha) e práticas mente-corpo, como o Tai Chi e Qigong, a fim de promover a saúde da população e restabelecer a harmonia do corpo. Na Índia, a medicina ayurvédica contava com recursos terapêuticos como Yoga, massagens, dietética, fitoterapia e meditação para a manutenção da vida. E, na Grécia, Hipócrates e Galeno faziam uso da prática de exercícios físicos e da adoção de hábitos de vida saudáveis para que as propriedades naturais do corpo (physis) pudessem atuar e recuperar o seu equilíbrio.2
Todos esses métodos e recursos terapêuticos originários de medicinas tradicionais compartilhavam de um paradigma vitalista e holístico, centrado na saúde e na busca da harmonia do indivíduo com o seu meio ambiente natural e social, e valorizavam3
- a subjetividade;
- o estabelecimento de vínculo entre o terapeuta e o paciente;
- a autonomia do paciente no seu processo de cura;
- a integralidade biopsicossocial no cuidado à saúde.
Ao longo dos séculos, o paradigma vitalista foi sendo substituído pelo paradigma mecanicista da medicina ocidental moderna, também conhecido como biomédico ou flexneriano, caracterizado pela dicotomia entre mente e corpo, reducionismo, causalidade linear, com enfoque
- na doença;
- na medicalização;
- no hospitalocentrismo;
- no intervencionismo profissional;
- no uso de tecnologias cada vez mais sofisticadas para diagnóstico e tratamento.
Para Luz4 e Queiroz,5 a consolidação do modelo biomédico como hegemônico em sistemas de saúde e em universidades ocorreu mais pelas transformações e influências culturais, políticas, científicas e econômicas decorrentes da industrialização e da ascensão do capitalismo na sociedade do século XIX do que pela sua superioridade terapêutica na resolução dos problemas de saúde pública.
Esse argumento pode ser comprovado com a crise que se instalou no paradigma biomédico a partir do século XX em decorrência do contexto sanitário de aumento da iatrogenia e dos custos em saúde, acompanhado da baixa resolutividade nos tratamentos das condições crônicas não transmissíveis.6
A partir dos anos de 1960, os países da Europa e das Américas passaram por um movimento de contracultura e orientalização do Ocidente, com a valorização e a inclusão de PICSpráticas integrativas e complementares em saúde oriundas da China, da Índia e de outros países asiáticos nos serviços de saúde e nas políticas públicas, ganhando a legitimação social e o reconhecimento da Organização Mundial da Saúde (OMSOrganização Mundial da Saúde) diante dos resultados positivos apresentados nos indicadores de saúde dos países de origem.6
A legitimação científica das PICSpráticas integrativas e complementares em saúde no mundo ganhou força a partir dos anos de 1990, principalmente para o tratamento de condições crônicas cardiovasculares, respiratórias, oncológicas, de saúde mental e musculoesqueléticas. Dentre as condições musculoesqueléticas, a dor lombar é a que possui maior evidência para o uso das PICSpráticas integrativas e complementares em saúde, que são recomendadas pelas pesquisas e diretrizes clínicas (guidelines) mais respeitadas no cenário internacional.7,8
Nesse contexto, em razão de as PICSpráticas integrativas e complementares em saúde compartilharem do paradigma biopsicossocial e dialogarem com o modelo teórico da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIFClassificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde) adotada pela OMSOrganização Mundial da Saúde em 2001, o seu uso na prática clínica da fisioterapia traumato-ortopédica pode ampliar a visão sobre o processo saúde–doença–incapacitação e potencializar os efeitos terapêuticos das intervenções.
Neste capítulo, discutem-se o conceito, a legislação, as características e as evidências de algumas PICSpráticas integrativas e complementares em saúde institucionalizadas no Sistema Único de Saúde (SUSSistema Único de Saúde), bem como os seus resultados no tratamento das condições musculoesqueléticas. O objetivo central deste capítulo não é capacitar nenhum profissional quanto à aplicação de um método ou de uma técnica em específico, mas fornecer conhecimento suficiente para que se possa entender a abordagem das PICSpráticas integrativas e complementares em saúde e suas possibilidades terapêuticas, principalmente na tomada de decisão clínica.
- Objetivos
Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de
- explicar a abordagem e as principais características de algumas PICSpráticas integrativas e complementares em saúde;
- descrever as diretrizes e os fundamentos que embasam a implantação das PICSpráticas integrativas e complementares em saúde nos sistemas de saúde;
- enumerar as principais evidências existentes e os mecanismos de ação envolvidos nos efeitos terapêuticos das PICSpráticas integrativas e complementares em saúde;
- desenvolver o raciocínio crítico quanto às indicações e limitações das PICSpráticas integrativas e complementares em saúde;
- identificar métodos e recursos terapêuticos das PICSpráticas integrativas e complementares em saúde mais adequados para o tratamento das condições musculoesqueléticas mais prevalentes.
- Esquema conceitual