- Introdução
A crise no atendimento do serviço hospitalar de urgência e emergência talvez seja o lado mais perverso do caos que assola a saúde pública do Brasil.
O serviço hospitalar de urgência e emergência é o segmento na cadeia de atenção à saúde mais exposto e visível para a sociedade, e a precariedade de seu atendimento, agravada por tratar de pacientes graves que exigem cuidados imediatos, faz com que os problemas do setor causem choque e indignação na população.
Quando se analisa a crise no serviço hospitalar de urgência e emergência, enfoca-se principalmente o componente hospitalar; porém, os problemas nesse segmento não se resolverão se não houver políticas públicas voltadas a toda a Rede de Atenção às Urgências (RAURede de Atenção às Urgências), formada pelos seguintes componentes:
- promoção, prevenção e vigilância;
- salas de estabilização;
- força nacional do Sistema Único de Saúde (SUSSistema Único de Saúde);
- serviço de atendimento móvel de urgência (SAMUserviço de atendimento móvel de urgência 192);
- unidade de pronto-atendimento (UPAunidade de pronto-atendimento) 24 horas;
- componente hospitalar;
- atenção domiciliar.
Os componentes referidos têm, na RAURede de Atenção às Urgências, como eixos transversais:
- atenção básica;
- acolhimento com classificação de risco;
- informação;
- regulação;
- qualificação profissional e resolutividade.
No sistema privado, o atendimento pré-hospitalar é realizado por serviços próprios.
Existe deficiência em toda a RAURede de Atenção às Urgências no Brasil, o que se reflete diretamente no componente hospitalar, gerando crise permanente nos prontos-socorros (PSpronto-socorros), cujas causas são multifatoriais, existindo inúmeros fatores determinantes para o caos que assola o setor. Entre as causas, estão
- a dificuldade de acesso dos pacientes ao atendimento primário;
- a falta de estrutura hospitalar no interior dos Estados;
- a falta de equipe de profissionais adequada;
- a grande rotatividade de médicos;
- os pacientes atendidos por ordem de chegada, sem acolhimento com classificação de risco;
- as escalas de profissionais incompletas;
- a falta de médicos especialistas de sobreaviso;
- a área física dos hospitais inadequada;
- a falta de leitos de retaguarda;
- a falta de leitos de centro de terapia intensiva (CTIcentro de terapia intensiva).
O sistema de saúde no Brasil é extremamente deficiente quanto ao atendimento na Atenção Básica. Os usuários do SUSSistema Único de Saúde não conseguem agendar consultas eletivas nas unidades básicas de saúde (UBS) com médicos clínicos gerais. A situação é pior quando a população necessita de consultas eletivas com médicos especialistas, pois simplesmente não estão disponíveis para atender a toda a demanda da população. A espera por uma consulta, quando se consegue marcá-la, é de meses. Com isso, as pessoas que necessitam de consultas eletivas, quer seja com clínicos gerais ou com especialistas, procuram espontaneamente os serviços hospitalares de urgência e emergência dos hospitais de referência por saberem que ali serão atendidos, por existirem clínicos, cirurgiões e especialistas de plantão para atendimento.
O fluxo de pacientes com doenças de caráter eletivo que procuram os serviços hospitalares de urgência e emergência contribui para tumultuar o ambiente nesses setores, além de ser um fator importante em sua superlotação.
As condições de atendimento no serviço hospitalar de urgência e emergência são as piores possíveis, não só para os médicos, mas para todos os profissionais de saúde que trabalham no setor. No local, existe superlotação de pacientes, que são atendidos normalmente por uma equipe de saúde subdimensionada, gerando grande estresse em todos os profissionais, que trabalham além do limite físico e intelectual para bem atenderem os pacientes, principalmente os médicos, que têm a maior responsabilidade na assistência aos doentes. As equipes médicas invariavelmente têm menos profissionais do que o necessário para o atendimento, condição que não é corrigida pelos administradores hospitalares ou gestores municipais ou estaduais.
As condições de trabalho dos médicos no serviço hospitalar de urgência e emergência estão muito longe das ideais, por várias razões, como
- ambiente insalubre e extremamente estressante, com estrutura física inadequada, agravada pela superlotação de pacientes;
- falta de segurança;
- má remuneração;
- jornada de trabalho massacrante;
- falta de medicações básicas;
- falta de médicos especialistas;
- regulação deficiente sem ter para onde encaminhar doentes que necessitem de atendimento em hospital de maior complexidade;
- responsabilidade sobre pacientes internados no setor por falta de leitos de retaguarda ou unidade de terapia intensiva (UTIunidade de terapia intensiva);
- responsabilidade por pacientes recebidos em “vaga zero” sem ter a menor condição de atendê-los bem.
A Portaria 2.048, de 5 de novembro de 2002,1 do Ministério da Saúde, atribui ao médico-regulador do sistema de urgência e emergência o grau de autoridade regulatória e determina que ele não deve aceitar a inexistência de vagas nos hospitais de referência, “mesmo na situação em que inexistam leitos vagos para a internação dos pacientes (a chamada ‘vaga zero’ para internação)”. Assim, a Portaria autoriza o médico-regulador a encaminhar pacientes graves para hospitais de referência, mesmo que estejam superlotados, sem vagas e também sem a menor condição de atendimento.
Todos os fatores mencionados são decisivos para que o exercício da medicina no setor de urgência e emergência seja de muito risco para o médico no cotidiano, expondo o profissional a demandas éticas e judiciais.
Neste artigo, serão abordados os aspectos éticos da medicina de emergência, com a discussão das situações mais frequentes enfrentadas pelos médicos nos PSpronto-socorros, comentadas de acordo com a normatização do Código de Ética Médica (CEMCódigo de Ética Médica) e a legislação do Conselho Federal de Medicina (CFMConselho Federal de Medicina).
- Objetivos
Ao final da leitura deste artigo, o leitor será capaz de
- reconhecer a crise no sistema de urgência e emergência no Brasil e os riscos que o médico assume ao se inserir nesse contexto;
- identificar, mediante simulação de casos clínicos do cotidiano das emergências, os riscos assumidos pelo médico, analisando-os sob as normas do CEMCódigo de Ética Médica com vistas ao reconhecimento e à adoção de condutas que diminuam a possibilidade de demandas éticas e judiciais no exercício da medicina.
- Esquema conceitual