Introdução
O avanço tecnológico, o emprego de tratamentos cada vez mais eficazes, o desenvolvimento das diversas subespecialidades pediátricas aliadas à proliferação das unidades de terapia intensiva pediátrica (UTIPs) e neonatal (UTINs) permitiram a sobrevivência até há pouco tempo considerada inviável de crianças, as quais morriam de forma precoce. Paralelamente, gerou-se um grupo de crianças portadoras de doenças crônicas com sequelas graves, dependentes de tecnologia e, muitas vezes, com uma reduzida expectativa de vida.1
Muitas das crianças com doenças crônicas necessitam de repetidas internações hospitalares, inclusive na fase final da doença, antecedendo o óbito. A maioria dos óbitos hospitalares em pediatria ocorre em UTIPs ou UTINs, seguido em menor escala pelo centro cirúrgico, a sala de emergência, a unidade de oncologia e enfermarias pediátricas. Muitas dessas crianças, em fase terminal de doença irreversível, quando internadas em UTIPs, acabam recebendo um tratamento centralizado na cura (que nesse caso é inalcançável), desconsiderando cuidados paliativos e as reais necessidades nos momentos que antecedem o final de vida.1
Nos Estados Unidos da América (EUA), entre 40 e 50 mil crianças morrem todos os anos por trauma, condições congênitas letais, prematuridade extrema, distúrbios hereditários ou doenças adquiridas. Dessas, mais de 1.500 são adolescentes que morrem em decorrência de complicações de doenças crônicas, incluindo neoplasias, doenças cardíacas, malformações congênitas, anomalias cromossômicas e doenças neurodegenerativas.
Os profissionais de saúde que cuidam de crianças com doenças terminais enfrentam muitos desafios, incluindo, entre outros, o tratamento de sintomas, conversas difíceis sobre prognóstico e objetivos do atendimento, tomada de decisão diante da incerteza prognóstica, assim como conflitos com membros da família e com outros profissionais que prestam atendimento a esses pacientes.2
Objetivos
Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de
- interpretar os conflitos em final de vida;
- identificar um ambiente de conflitos na UTIP;
- definir conflitos, fontes e partes envolvidas;
- reconhecer a epidemiologia de conflitos em UTIP;
- identificar, prevenir e gerenciar os conflitos que ocorrem em UTIP.
Esquema conceitual
Poucas áreas da medicina são tão afetadas no aspecto emocional pelos profissionais envolvidos quanto as de cuidado de crianças gravemente doentes. Os médicos devem executar tarefas altamente exigentes, fornecer atualizações prognósticas constantes, educar os membros da família, ajudá-los no enfrentamento e também a tomar decisões difíceis sobre o cuidado dos entes queridos. Equipamentos sofisticados, muitos profissionais e o envolvimento de consultores em várias especialidades sobrecarregam pacientes, familiares e a equipe.2
A morte de uma criança é uma realidade difícil e dolorosa para as famílias. Em parte, porque desafia a ordem esperada dos eventos da vida, suposições existenciais básicas e, também, porque ameaça o papel dos pais como protetores de seus filhos.2
Famílias de pacientes de unidades de terapia intensiva (UTIs) experimentam sofrimento emocional, ansiedade e depressão nesse ambiente onde as decisões devem ser tomadas com rapidez, em estrita conformidade com os princípios científicos e bioéticos.2
Os pacientes de UTIP em geral não conseguem interagir com a equipe e, portanto, a comunicação ocorre em grande parte com a família. Identificar as preferências e os valores dos pacientes ao mesmo tempo em que presta assistência centrada na família constitui um desafio específico nessas unidades.2
Pacientes com indicação de cuidados paliativos frequentemente são encaminhados às UTIs, e a decisão da limitação terapêutica ou retirada de tratamentos fica sobretudo sob a responsabilidade dos profissionais intensivistas.2
Todas as demandas podem levar ao sofrimento moral entre os profissionais de saúde que precisam passar por tensões de princípios coexistentes para evitar danos aos seus pacientes, possibilitar autonomia das famílias, enquanto se esforçam em manter sua integridade profissional.3
Os conflitos na UTI surgem e se desenvolvem em um ambiente tenso, em uma complexa rede de relacionamentos interpessoais e na necessidade de tomar decisões de vida ou morte sob considerável pressão de tempo. Todos os que trabalham em uma UTI podem enfrentar conflitos em sua prática diária.3
Os conflitos e as dificuldades de relacionamento com outros membros da equipe têm sido apontados como fortes fatores de risco para o estresse e a síndrome de burnout entre profissionais que trabalham em UTIPs.3