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ESPIRITUALIDADE E SAÚDE NO CAMPO DA Atenção Primária à Saúde

Paulo Celso Nogueira Fontão

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Objetivos

Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de

  • definir os conceitos gerais do que se trata saúde e espiritualidade;
  • reconhecer ferramentas para abordagem com base na saúde e na espiritualidade;
  • adquirir ferramentas para enfrentar, no dia a dia da assistência, os desafios e as possíveis barreiras;
  • identificar o impacto da espiritualidade na vida das pessoas, da dinâmica do processo saúde–doença, na dinâmica da vida e do trabalho das equipes de saúde, e na delicadeza obrigatória na abordagem;
  • utilizar essas competências para o bem das pessoas cuidadas e nas comunidades.

Esquema conceitual

Introdução

Uma afirmação do então Ministro da Saúde Adib Jatene, grande incentivador da Atenção Primária à Saúde (APS) e da Estratégia Saúde da Família (ESF) no Brasil, na primeira década do SUS, nosso Sistema Único de Saúde, apresenta consideráveis desafios, tanto na formação como na prática: “Temos que ser especialistas em gente”.

Os profissionais de saúde, em sua maioria, buscam a área por paixão em servir e cuidar, sobretudo aqueles que optam por trabalhar na APS em geral, mas principalmente junto às populações mais vulneráveis e com poucos recursos, nas periferias geográficas das cidades e do país.

Não é possível fazer Atenção Primária de qualidade sem lembrar de um conjunto de princípios propostos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), lembrados por Barbara Starfield, da Johns Hopkins University, já no final da década de 1990, a partir da Carta de Lubliana, de 1996:1

  • Que seja dirigida por valores de dignidade humana.
  • Que respeite a equidade, os princípios de solidariedade e a ética profissionais.
  • Que seja direcionada para a proteção e a promoção da saúde.
  • Que seja centrada nas pessoas, permitindo que os cidadãos interfiram nos serviços de saúde e possam se responsabilizar por seu cuidado.
  • Que seja focada em qualidade, incluindo os conceitos de sustentabilidade e o custo efetivo.
  • Que permita, com financiamento adequado, a cobertura universal dos cidadãos e dos territórios e o acesso equitativo.

Os atributos nucleares da APS são acesso (atenção ao primeiro contato), longitudinalidade (atenção orientada para o paciente ao longo do tempo), integralidade da atenção (quem deverá oferecer o que na rede de saúde) e coordenação do cuidado (junta-se tudo e orienta-se os caminhos da assistência, dos vários pontos da rede).2

Já os atributos derivados da APS são orientação familiar (a família, qualquer que seja seu modelo, é o centro do cuidado, considerada a sua célula), orientação comunitária (com os pés no território específico e naquelas pessoas) e competência cultural (tem-se a delicadeza de olhar quem são, quais suas origens, suas riquezas culturais, suas tradições e sua história).2

O olhar sobre a dimensão da espiritualidade na assistência em saúde está especialmente no cuidado integral e nas competências culturais, que não podem ser desprezadas ao cuidar de pessoas, de uma comunidade.

Dr. C. atuava como médico de família em uma equipe da Estratégia Saúde da Família (ESF), na periferia de São Paulo, no Distrito da Brasilândia, Zona Norte da cidade. Trabalhou no local por cinco anos e meio, e pôde conhecer bastante a comunidade, suas vivências, a cultura do local, ou, ao menos, achava que sim, até o encontro com a Srª AL., em uma tarde de terça-feira chuvosa, em um dia frio do mês de junho.

A paciente e sua família eram acompanhadas pela equipe em que estava o Dr. C., desde a implantação da ESF no local, em 1998. AL. era uma mulher bastante ativa, com 65 anos, de perfil delicado, carinhoso, mas altivo, serena e forte. Viúva há 10 anos, teve cinco filhos, todos casados e que constituíram família, já com nove netos, que lhe traziam enorme alegria e motivação para a vida.

Aos 40 anos, AL. tinha descoberto ter hipertensão arterial sistêmica (HAS). Já aos 49, descobriu ser portadora de diabetes melito tipo 2 (DM2).

A paciente procurava se cuidar, fazer dieta, participava do grupo de caminhada da UBS duas vezes por semana, do artesanato e contribuía nas festas organizadas para a comunidade. Pelas informações do Agente Comunitário de Saúde, era realmente muito cuidadosa com os horários das medicações e com sua dieta. Sua casa era um primor de organização e limpeza sempre, ele relatava.

Naquela tarde fria, ela aguardava no corredor seu horário de consulta com Dr. C. Ele estava finalizando outro atendimento antes de chamá-la. No entanto, ainda durante o atendimento do outro paciente, incomodou-se com uma tosse intensa, rouca, no corredor. Abrindo a porta, chamou AL., e, para sua surpresa, a tosse era dela. Segue-se o diálogo entre o médico e a paciente.

Dr. C.: Dona A., boa tarde! Eita, que tosse, hein! Está assim há quantos dias?

AL.: Ah! Desde sábado, Dr., mas estou tomando um chá de guaco com poejo, já estou melhorando...

Dr. C.: Vamos ver como está, os últimos exames que fez já estão aqui. Ainda não vi, veremos juntos, vou anotando e lhe explicando, assim, no final, leva com a senhora, coloca lá na sua pastinha. Sei que está fazendo seguimento também com o oftalmologista, devido àquela catarata que vai operar, pode levar para lhe mostrar, tá bom?

AL.: Ótimo, Dr. C., semana que vem retorno com ele. E como estão os meus exames?

Dr. C.: Primeiro, quero saber da senhora, como está, como tem passado, tem tomado corretamente a medicação, alguma dificuldade? Tem mantido a dieta?

AL.: Tudo certo, Dr. C.; medicações nos horários, dieta como sempre, procuro me cuidar. Tenho meus filhos e meus netos, e quero vê-los crescer, bem de saúde!

Dr. C.: Vamos vendo aqui... o hemograma está normal, sem anemia, nenhuma alteração de coagulação, células de defesa ok... eita, tem coisa ruim aqui...

AL.: O que, Dr.?

Dr. C.: Os níveis de açúcar em jejum, a hemoglobina glicada, que traz um retrato desse controle nos últimos três meses, o colesterol, os níveis de triglicérides...Eita, eita, eita! O que houve, Dona. A.? Vou lhe examinar, depois conversamos melhor.

Dr. C.: Vamos pesar, sua medida eu já tenho anotada aqui, depois, por gentileza, sente-se ali na maca; vamos ver o coração, a pressão, ver sua garganta, seus pulmões... eita! Muita secreção! Não sabia mesmo até hoje que fumava!

AL.: Eu não fumo, Dr. C.!

Dr. C.: Estranho, a ausculta cardíaca está bem carregada e típica de um fumante... tem certeza de que não fuma, de que nunca fumou, dona A.? A pressão também não está tão controlada como das outras vezes...

AL.: Dr. C., pela relação de confiança que estabeleci com o senhor em todo esse tempo... eu não fumo, mas o “santo” fuma!

Então, a paciente contou ao Dr. C. que sua tradição religiosa era de matriz africana, que era “mãe de santo”, que era o que chamam de “cavalo”, que incorporava o santo nas reuniões semanais e para o santo traziam oferendas: frutas, velas, água cristalina, muitos pratos, muita carne, muitos doces e charutos. Essas oferendas são, a princípio, para o orixá que incorpora, mas depois, é compartilhado com as pessoas presentes.

“Então era isso”, pensou o Dr. C., e não sabia disso ainda, achou que a conhecia tão bem, mas tinha deixado de lado, nunca tinha abordado essa dimensão tão importante, da espiritualidade, da religiosidade da dona AL. e de sua família.

Dr. C.: Dona A., meu maior respeito por sua fé, agradeço por sua confiança de ter compartilhado comigo! Não sei como fará, mas não lhe está fazendo bem o que o santo está comendo nesses momentos de culto, veja como fazer. Preocupo-me inclusive por ele, o santo, que precisa da senhora bem, não é?

Passados dois meses, AL. retorna com novos exames, tudo normal, sem Dr. C. ter alterado nada na medicação! Faltava um elemento nesse projeto terapêutico, que agora não falta mais.

ATIVIDADES

1. Como você avalia a possibilidade de introduzir a dimensão da espiritualidade em seus cuidados em saúde? Sente inseguranças? Se sim, quais?

Confira aqui a resposta

Reflexão aberta, individual, pré-leitura do capítulo. Não há respostas incorretas.

Resposta correta.


Reflexão aberta, individual, pré-leitura do capítulo. Não há respostas incorretas.

Reflexão aberta, individual, pré-leitura do capítulo. Não há respostas incorretas.

2. Como você definiria espiritualidade?

Confira aqui a resposta

O texto traz quatro definições, sendo estas de Pe. Elias Wolff, Harold Koenig, Christina Puchalski e Gowri Anandarajah, que são, de certa forma, complementares. No entanto, é interessante, antes da leitura deste capítulo, cada um construir uma resposta, a partir das informações que se tem até então e, após, checar com os novos conhecimentos.

Resposta correta.


O texto traz quatro definições, sendo estas de Pe. Elias Wolff, Harold Koenig, Christina Puchalski e Gowri Anandarajah, que são, de certa forma, complementares. No entanto, é interessante, antes da leitura deste capítulo, cada um construir uma resposta, a partir das informações que se tem até então e, após, checar com os novos conhecimentos.

O texto traz quatro definições, sendo estas de Pe. Elias Wolff, Harold Koenig, Christina Puchalski e Gowri Anandarajah, que são, de certa forma, complementares. No entanto, é interessante, antes da leitura deste capítulo, cada um construir uma resposta, a partir das informações que se tem até então e, após, checar com os novos conhecimentos.

3. Qual o valor da aproximação das raízes culturais e religiosas de uma comunidade?

Confira aqui a resposta

O texto deste capítulo relembra os princípios da APS, que tem a competência cultural de um território ou de uma comunidade como valor; basta isso para entender que é preciso conhecer e valorizar essas raízes. Porém essa “antropologia” de um povo, de um grupo social, deve ser sempre a base respeitosa em que se deve atuar e com a qual é necessário dialogar e pactuar nossos projetos terapêuticos.

Resposta correta.


O texto deste capítulo relembra os princípios da APS, que tem a competência cultural de um território ou de uma comunidade como valor; basta isso para entender que é preciso conhecer e valorizar essas raízes. Porém essa “antropologia” de um povo, de um grupo social, deve ser sempre a base respeitosa em que se deve atuar e com a qual é necessário dialogar e pactuar nossos projetos terapêuticos.

O texto deste capítulo relembra os princípios da APS, que tem a competência cultural de um território ou de uma comunidade como valor; basta isso para entender que é preciso conhecer e valorizar essas raízes. Porém essa “antropologia” de um povo, de um grupo social, deve ser sempre a base respeitosa em que se deve atuar e com a qual é necessário dialogar e pactuar nossos projetos terapêuticos.

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