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ESTRATÉGIAS EXTRACORPÓREAS DE SUPORTE À VIDA NA COVID–19

Autor: Natália Coronel de Lima Lages
epub-BR-PROFISIO-ADUL-C11V4_Artigo4

Introdução

A oxigenação por membrana extracorpórea (do inglês, extracorporeal membrane oxygenation [ECMO]) é uma modalidade de suporte de vida extracorpóreo que possibilita assistência temporária à falência da função pulmonar e/ou cardíaca, refratária ao tratamento clínico convencional (ventilação mecânica invasiva [VMI], estratégia protetora, ventilação em posição prona e/ou uso de óxido nítrico inalatório [NOi]).1–3

O primeiro relato do uso com sucesso de um dispositivo de assistência circulatória extracorpórea data de 1954, durante uma cirurgia cardíaca, porém, apenas em 1972, foi utilizado no contexto de falência ventilatória na terapia intensiva.1–3

O primeiro estudo multicêntrico e randomizado, que avaliou o emprego da ECMO no contexto de insuficiência respiratória, foi publicado em 1979. Desde as primeiras descrições dessa técnica, melhorias significativas ocorreram no dispositivo e no seu manejo e, consequentemente, nos desfechos dos pacientes em ECMO.1–3

Diversos estudos descrevem a utilização da ECMO em pacientes com choque cardiogênico refratário, com síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) refratário ao suporte clínico convencional ou ainda em parada cardiorrespiratória, sendo as indicações de instalação e manuseio descritas nas orientações da Organização de Suporte Extracorpóreo à Vida (Extracorporeal Life Support Organization [ELSO]) para insuficiência cardíaca e respiratória do adulto.1,2,4–7

Para o manejo ventilatório adequado do paciente durante a estratégia de ECMO, é fundamental que o fisioterapeuta responsável conheça o funcionamento desse sistema e sua monitorização. O manejo ventilatório e dos gases deve ser conduzido por profissional especialista em ECMO, fisioterapeuta ou médico intensivista com experiência em ventilação mecânica (VM).1,8–10

As decisões são multidisciplinares, e a estratégia ventilatória é complementar e não pode ser dissociada da estratégia de oxigenação e remoção de dióxido de carbono (CO2) através da membrana. Assim, as ações precisam ser planejadas, executadas e monitoradas de forma simultânea.8–10

Uma análise dos registros da ELSO, publicada em setembro de 2020, comparou a mortalidade em 90 dias entre Europa, América do Norte, Sul/Oeste da Ásia (aproximadamente 40%), Pacífico da Ásia (aproximadamente 28%) e América Latina (aproximadamente 62%).11

Uma diretriz publicada pela ELSO em 202112 sobre o papel da ECMO, em pacientes com falência cardiopulmonar grave em função da COVID–19, descreveu uma incidência acima de 90% na utilização da modalidade venovenosa (V/V) para os casos de SDRA.

Embora a duração da ECMO V/V na COVID–19 possa ser mais prolongada (média de 18 dias), comparada aos pacientes não COVID–19 (média de 12 dias), a mortalidade publicada parece ser semelhante entre os dois grupos. De acordo com os dados históricos pré-pandêmicos registrados pela ELSO, a ECMO V/V resulta em uma mortalidade de aproximadamente 40% e a venoarterial (V/A) de 55%.12

Segundo Shaefi e colaboradores, os pacientes com COVID–19 que desenvolveram a forma grave da SDRA — relação entre pressão parcial de oxigênio no sangue arterial e fração inspirada de oxigênio (PaO2/FiO2) <100mmHg — ventilados mecanicamente com estratégia protetora e que receberam ECMO, apresentaram uma mortalidade, em 60 dias, de 34,6% versus 47,4% (p <0,001) no grupo de pacientes que não recebeu ECMO.13

A canulação para ECMO ocorreu, em média, no 13° dia dos primeiros sintomas da doença, no sexto dia de internação hospitalar, no terceiro dia de internação em unidade de terapia intensiva (UTI) e no segundo dia de VMI. No desfecho avaliado em 28 dias, o tempo mediano de permanência em ECMO foi de 16 dias e o tempo mediano de VMI foi de 26 dias. Isso sugere que, para um grupo seleto de pacientes com falência respiratória aguda por COVID–19, a ECMO pode reduzir a mortalidade.13

Além da falência respiratória, alguns pacientes com COVID–19 podem desenvolver miocardite, embolia pulmonar maciça, miocardiopatia, arritmias e síndrome coronariana aguda; portanto, podem exigir suporte circulatório mecânico por meio da ECMO V/A.1,6,14

Os critérios de seleção convencionais para ECMO devem ser respeitados, porém quando os recursos se tornam mais restritos, como durante uma pandemia, uma avaliação mais rigorosa deve ser implementada.12,14

Objetivos

Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de:

 

  • identificar os componentes do circuito da ECMO;
  • realizar o monitoramento dos parâmetros da ECMO;
  • reconhecer as indicações e contraindicações da ECMO;
  • reconhecer as configurações da ECMO;
  • manejar a VM durante a ECMO e durante o desmame da ECMO.

Oxigenação por membrana extracorpórea

Circuito e componentes

O circuito básico da ECMO é composto por console, bomba, membrana ou oxigenador e tubos de condução (cânulas). Componentes adicionais, como aquecedor de água, monitores, alarmes, baterias, entre outros, podem ser incluídos no sistema (Figura 1).

Figura 1 — Esquema conceitual do sistema de ECMO.

Fonte: Adaptada de Chaves e colaboradores (2019).2

Bomba

A bomba provê o fluxo sanguíneo parcial ou pleno (até 60 a 80mL/kg/min) ao paciente. Em caso de mau funcionamento da bomba, o fluxo do sistema pode ser mantido por meio de um sistema de bombeamento manual.1

Membrana ou oxigenador

A membrana ou oxigenador é a porção do circuito em que ocorre a oxigenação do sangue e remoção de CO2 (Figura 2). Dependendo do modelo de membrana empregado, a taxa de fluxo (capacidade de troca gasosa ou capacidade máxima de entrega de oxigênio) difere de acordo com suas propriedades, como sua área de superfície e o material utilizado.1

A capacidade de troca gasosa da membrana deve ser considerada no momento da sua escolha. A fração ofertada de oxigênio é ajustada por meio de um botão localizado no misturador de gás do equipamento de ECMO.1

O2: oxigênio; CO2: dióxido de carbono.

Figura 2 — Esquema conceitual do oxigenador do sistema de ECMO.

Fonte: Adaptada de Chaves e colaboradores (2019).2

Cânulas

As cânulas são cateteres posicionados diretamente no interior dos vasos, podendo ser duplo lúmen ou mono lúmen, e seus diâmetros internos são fatores determinantes na resistência ao fluxo sanguíneo.1

Cânula de drenagem (entrada no sistema)

A fixação da cânula em posição adequada deve ser verificada. Além disso, é necessária a observação de hematomas ou sangramento pelo óstio. A resistência da cânula de drenagem determinará o fluxo sanguíneo total que poderá ser direcionado ao circuito. A pressão sanguínea pode ser mensurada e controlada por um sensor conectado a um monitor posicionado antes da entrada na bomba.1

Cânula de retorno (saída do sistema)

Assim como na cânula de entrada, a fixação deve sempre ser averiguada para fins de segurança. A resistência da cânula de retorno determinará a pressão do sangue no circuito pós-membrana.1

Monitorização

Após a canulação para ECMO V/V, o paciente deve estar sedado e sob bloqueio neuromuscular para ajustes iniciais de parâmetros ventilatórios e titulação da pressão positiva expiratória final (PEEP).

Não é recomendado permitir ventilação espontânea nas primeiras 48 horas de ECMO.

Além disso, primeiramente, deverá ser reduzida a FiO2 do ventilador mecânico e, posteriormente a fração ofertada de oxigênio da membrana para manutenção da saturação periférica de oxigênio (SpO2) entre 90 e 96%.15–18 Especialistas sugerem, no contexto da COVID–19, que a SpO2 deva ser mantida entre 92 e 96%, pela presença de fenômenos microtrombóticos associados.

No circuito da ECMO, o fluxo de gás para remoção de CO2 é ofertado por meio de um fluxômetro. Inicialmente, os fluxos de gás e de sangue costumam guardar a relação de 1:1, nos casos de suporte pleno com ECMO de alto fluxo sanguíneo.1,2

É necessário verificar a recomendação para a programação inicial dessa relação (fluxo de gás e de sangue) no manual do fabricante de cada membrana. O fluxo de gás costuma variar entre 2 e 15L/min e deverá ser ajustado para manutenção de uma pressão parcial de dióxido de carbono (PaCO2) dentro dos limites desejáveis (35 e 45mmHg).1,2

A transferência de CO2 através da membrana ocorre em velocidade superior à transferência de oxigênio; logo, é necessário atentar para que o CO2 não seja removido em excesso ou muito rapidamente. A rápida remoção de CO2 do sangue pode culminar em vasoconstrição e hipoperfusão cerebral. A recomendação é não exceder 10mmHg por hora.1,2

O aumento do fluxo de gás aumenta a extração de CO2 do sangue, porém sem melhora da oxigenação. O incremento da oxigenação ocorre por meio do aumento da fração de oxigênio ofertada e/ou por meio do aumento do fluxo de sangue através da membrana do oxigenador.1,2,5

Indicações

A indicação primária para ECMO é a falência cardíaca e/ou pulmonar aguda e grave, mesmo após terapia convencional adequada. O circuito é planejado para suporte total do paciente envolvido, a menos que a intenção inicial seja específica para suporte parcial, como remoção de CO2.

O acesso vascular é feito por meio de cânulas de grosso calibre em vasos centrais e calibrosos. A resistência ao fluxo da cânula de drenagem determinará o quanto de sangue poderá ser direcionado ao circuito, e a resistência da cânula de retorno determinará a pressão sanguínea após a membrana na linha de retorno ao paciente.1,19

LEMBRAR

A técnica de canulação, o tipo de cânula e o local do implante são definidos de acordo com a necessidade de suporte do paciente — suporte V/A para falência circulatória, suporte V/V para falência pulmonar aguda ou suporte arteriovenoso (A/V) para remoção de CO2.1–19

Ensaios clínicos recentes avaliaram a eficácia e a segurança da ECMO em pacientes com SDRA grave,7,15 sendo que as publicações recentes demonstraram redução na mortalidade desses pacientes.9,13 Alguns algoritmos para tratamento da SDRA foram adaptados para utilização no tratamento durante a pandemia por COVID–19, como apresentado na Figura 3.

SDRA: síndrome do desconforto respiratório agudo; PaO2/FiO2: relação entre pressão parcial de oxigênio no sangue arterial e fração inspirada de oxigênio; PEEP: pressão positiva no final da expiração; ECMO: oxigenação por membrana extracorpórea; PaCO2: pressão parcial de dióxido de carbono.

1: Considerar aumento na frequência respiratória (FR) e parâmetros ventilatórios ajustados para manter uma pressão de platô (Pplatô) ≤30cmH2O.

2: Considerar bloqueio neuromuscular.

3: Não existe consenso quanto à contraindicação absoluta, exceto doença pulmonar terminal sem possibilidade de transplante pulmonar; o critério de exclusão utilizado no estudo EOLIA pode ser uma abordagem conservadora nas contraindicações de ECMO.

4: Exemplos: bloqueio neuromuscular, estratégia com PEEP elevada, vasodilatador pulmonar inalatório, manobra de recrutamento alveolar.

5: Recomendação precoce de ECMO baseada nos critérios do estudo EOLIA.

Figura 3 — Algoritmo para manejo da SDRA.

Fonte: Adaptada de Lages e Timenetsky (2020);8 Combes e colaboradores (2018);15 Shekar e colaboradores (2020).20

Nos pacientes elegíveis para ECMO, seu início deve ser imediato, desde que realizado em um centro experiente. Sua indicação como estratégia de resgate, que envolve postergar a instalação até a descompensação, tem sido um caminho no atual cenário de crise; entretanto, não é uma alternativa suportada pelas evidências disponíveis.12,15

No contexto da COVID–19, o Quadro 1 apresenta os critérios utilizados pelo estudo EOLIA15 e sugeridos pela ELSO,12,14 com as condições a serem avaliadas na indicação de ECMO. É importante ressaltar que tais condições não representam indicações absolutas e devem ser ajustadas de acordo com a capacidade de cada serviço.2,12,20

Quadro 1

INDICAÇÕES DE ECMO NA COVID–19

  • Idade <70 anos
  • VMI < 7 a 10 dias
  • Posição prona e BNM são recomendados
  • Pplatô <30cmH2O
  • PaO2/FiO2 <50mmHg por 3 horas
  • PaO2/FiO2 <80mmHg por 6 horas
  • pH <7,25 com PaCO2 ≥60mmHg por 6 horas

VMI: ventilação mecânica invasiva; BNM: bloqueador neuromuscular; Pplatô: pressão de platô; PaO2/FiO2: relação entre pressão parcial de oxigênio no sangue arterial e fração inspirada de oxigênio; PaCO2: pressão parcial de dióxido de carbono.

Fonte: Adaptado de Lages e Timenetsky (2020).8

A elegibilidade de pacientes para ECMO pode ser individualizada a critério dos centros especializados. Vale destacar que não existe consenso quanto às contraindicações absolutas, exceto doença pulmonar terminal sem possibilidade de transplante pulmonar.2,12,20

A ELSO não recomenda ECMO em parada cardiorrespiratória durante a pandemia por COVID–19.2,12,20

Contraindicações

A única contraindicação absoluta para ECMO é a falência cardíaca e/ou pulmonar irrecuperável em pacientes não candidatos ao transplante.1,8,15

Nas demais situações, deve-se avaliar o risco versus benefício da terapêutica e, portanto, são consideradas contraindicações relativas malignidade, risco de fenômenos hemorrágicos com uso de anticoagulantes, uso de imunossupressor, idade e tamanho dos pacientes sob VM com Pplatô >30cmH2O por 7 dias ou mais. As contraindicações da ECMO estão representadas na Figura 4.1,8,15

Figura 4 — Contraindicações da ECMO.

Fonte: Elaborada pela autora.

Configurações

O circuito de ECMO será configurado de acordo com o tipo de suporte indicado para o paciente (Figura 5).1

ECMO: oxigenação por membrana extracorpórea; CO2: dióxido de carbono; V/A: venoarterial; V/V: venovenoso; A/V: arteriovenoso.

Figura 5 — Indicações da ECMO.

Fonte: Elaborada pela autora.

O Quadro 2 apresenta as indicações da ECMO considerando os tipos de suporte.

Quadro 2

INDICAÇÕES DA ECMO DE ACORDO COM O TIPO DE SUPORTE INDICADO

Suporte V/A

  • Indicação primária para falência circulatória
  • Configuração necessária para suporte circulatório, além de ser apropriada para suporte respiratório1,19

Suporte V/V

  • Indicação primária para falência pulmonar aguda
  • Apenas para suporte ventilatório
  • Não proporciona suporte circulatório1,19

Suporte A/V

  • Indicação primária exclusiva para remoção de CO2
  • Dispositivo limitado a um baixo fluxo sanguíneo
  • Utilizado apenas para remoção de CO21,19

V/A: venoarterial; V/V: venovenoso; A/V: arteriovenoso; CO2: dióxido de carbono.

Os pacientes com COVID–19 podem apresentar complicações pulmonares, evoluindo para um quadro de hipoxemia grave. Na presença de um quadro hipoxêmico refratário ao suporte clínico convencional, a modalidade de primeira escolha é a V/V, podendo ser convertida em V/A, caso o paciente apresente falência cardíaca secundária.1,12,14

LEMBRAR

O manejo adequado da VMI é fundamental para proteção pulmonar e pode promover um benefício adicional ao paciente durante a ECMO. Dessa forma, primeiramente, deve-se saber a configuração do suporte instituído pela ECMO e se este é parcial ou pleno.8,12

Pode-se considerar o suporte pleno quando o débito de sangue que passa pelo oxigenador é ≥60% do débito cardíaco do paciente (débito de sangue pela ECMO/débito cardíaco do paciente [QECMO/QDC] >0,6), possibilitando, assim, uma saturação arterial de oxigênio (SaO2) >88 a 90%, mesmo na ausência de função pulmonar.8,12

Para pacientes com falência cardíaca severa em ECMO V/A, o fluxo através da artéria pulmonar pode estar muito reduzido durante o suporte pleno, e a manutenção da ventilação alveolar normal pode ocasionar hiperventilação pulmonar, resultando em alcalose tecidual, acelerando o processo de trombose vascular pulmonar na presença de lesão pulmonar grave.1

A pressão positiva nas vias aéreas também afeta a pré-carga e a pós-carga tanto do ventrículo direito (VD) como do ventrículo esquerdo (VE). Os pacientes em ECMO V/A com falência de VD podem sofrer efeitos negativos de altos níveis de PEEP, enquanto os pacientes com falência de VE podem se beneficiar de níveis elevados de PEEP, reduzindo a probabilidade de edema pulmonar.3,21–23

Uma estratégia ventilatória ultraprotetora pode ser empregada durante a estratégia de ECMO com suporte pleno, uma vez que o oxigenador é capaz de manter as taxas de oxigênio e dióxido de carbono dentro de valores desejados.18

Volumes pulmonares reduzidos são recomendados; entretanto, aumentam as áreas de atelectasia, gerando maior desequilíbrio da relação ventilação/perfusão (V/Q). Dessa forma, conclui-se que níveis mais elevados de PEEP podem ser recomendados, contudo o paciente deve ser avaliado de forma individualizada, e suas limitações cardíacas e hemodinâmicas devem ser consideradas nesse ajuste.18

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