Objetivos
Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de
- revisar o conceito de pré-habilitação;
- utilizar a pré-habilitação no paciente cirúrgico e para redução das complicações pós-operatórias;
- descrever como o programa de pré-habilitação pode ser realizado;
- realizar a avaliação funcional dos pacientes no pré-operatório;
- descrever a pré-habilitação cardiovascular, pulmonar, endócrina, hematológica, nutricional, fisioterápica e psicossocial;
- explicar os critérios para revisão dos medicamentos em uso.
Esquema conceitual
Introdução
A pré-habilitação é um processo multidisciplinar complexo, que tem como objetivo otimizar os sistemas vitais do paciente em tempo determinado entre o diagnóstico e a indicação cirúrgica e o dia da cirurgia.1 A primeira ideia de pré-habilitação surgiu na Segunda Guerra Mundial, quando um programa mostrou que dois meses de educação, nutrição e treinamento físico poderiam transformar os homens alistados como recrutas abaixo do padrão em recrutas padrão.2
A primeira publicação intitulada Pré-Habilitação, Reabilitação e Revogação no Exército foi publicada em 1946 no British Journal of Anesthesia.2 Nos anos 1990, alguns pesquisadores, capitaneados por Kehlet e Wilmore, reconheceram os inúmeros obstáculos para a recuperação pós-operatória adequada e iniciaram os conceitos de fast-track surgery, elencando maneiras de se acelerar a recuperação pós-operatória.
A partir desse conceito, diversos programas dedicados a melhorar a evolução após procedimentos cirúrgicos complexos foram criados, sendo o primeiro e mais conhecido desses o Enhanced Recovery After Surgery (ERAS), criado no Norte da Europa e hoje difundido mundialmente, além de outros, como o American Society of Enhanced Recovery (ASER) e o SAGES SMART Enhanced Recovery Program (SMART), nos EUA. No Brasil, foi criado o Projeto Aceleração da Recuperação Total Pós-Operatória (ACERTO), programa de sucesso que inclui livros publicados e congressos anuais dedicados ao tema.
Nos últimos 60 anos, a cirurgia experimentou um desenvolvimento possivelmente maior do que em toda a história pregressa, com avanços como a profilaxia antibiótica e antitrombótica, a nutrição parenteral e enteral, os transplantes de órgãos sólidos, a videocirurgia e, mais recentemente, a robótica, que mudaram, de forma radical, os resultados cirúrgicos. Hoje, inúmeros procedimentos cirúrgicos, que antes demandavam muitos dias de internação, recebem alta no mesmo dia, com segurança e baixos índices de complicações.3
De forma paralela, houve grande avanço nos métodos diagnósticos, na radiologia e na endoscopia invasivas, nas técnicas anestésicas e nos cuidados intensivos pós-operatórios. Entretanto grandes procedimentos abdominais, em especial, por câncer do aparelho digestivo, infelizmente ainda se associam com elevados índices de morbidade, chegando a 30 a 50% dos casos e mortalidade de 1 a 3%.3
A prática do preparo via pré-habilitação tem se mostrado extremamente promissora para contribuir para reduzir ainda mais os riscos pós-operatórios, sendo baseada em princípios teóricos sólidos e com evidência emergente encorajadora. Esse conceito se baseia na janela de oportunidade representada pelo período de dias ou semanas que antecedem o procedimento cirúrgico, visando melhorar ainda mais os resultados cirúrgicos.
Várias medidas podem ser tomadas no período de espera pela cirurgia, as quais podem ter impacto positivo na recuperação do paciente. Esse conceito foi difundido inicialmente por anestesistas do Canadá e inclui uma equipe multiprofissional composta por clínico, fisioterapeuta, nutricionista e psicólogo, entre outros, e foi concebida para ser realizada no domicílio. Em geral, deve durar de quatro a cinco semanas no pré-operatório e estender-se por até oito semanas no pós-operatório. Visa:
- otimizar o desempenho físico, clínico e psicológico do paciente;
- controlar comorbidades, como hipertensão arterial, função cardiopulmonar, controle do diabetes e doença coronariana;
- ajustar a dose de medicamentos em uso;
- controlar a obesidade, o tabagismo e o etilismo;
- estimular a atividade física.
É evidente que esse programa só pode ser implementado se a cirurgia puder ser postergada por algumas semanas sem risco adicional ao paciente. O programa de pré-habilitação é complexo e ambicioso, demandando pessoal da área de saúde competente e dedicado.4
Ciente da dificuldade de implementação de um programa de tal magnitude em âmbito nacional, o American College of Surgeons (ACS) criou o National Surgical Quality Improvement Program (NSQIP), visando elencar os elementos mais importantes a serem recomendados antes da cirurgia.4
Em geral, esse preparo é baseado em três pilares: nutrição, fisioterapia e fortalecimento da capacidade física e apoio psicológico para ajudar no enfrentamento, além do gerenciamento de condições clínicas preexistentes, como diabetes e hipertensão arterial, e da redução da ingestão de álcool e tabagismo.