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Religiosidade e espiritualidade em atendimentos psicológicos: reflexões perenes para uma prática profissional humanizada, científica, ética e acolhedora

Autores: Deise Coelho de Souza, Lucas Rossato, Fabio Scorsolini-Comin
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Objetivos

Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de

  • diferenciar os conceitos de religião, religiosidade e espiritualidade (R/E);
  • descrever como a R/E pode interferir nos diversos comportamentos;
  • evidenciar a importância da compreensão dos aspectos religiosos e espirituais por psicólogos;
  • evidenciar as relações existentes entre aspectos religiosos, espirituais e de desfechos em saúde;
  • apresentar orientações para as práticas profissionais em psicologia acerca da R/E do paciente/usuário.

Esquema conceitual

Introdução

Historicamente, diferentes áreas do conhecimento têm se dedicado a compreender como as religiões, as religiosidades e as espiritualidades influenciam nos modos de vida das pessoas e, de forma mais ampla, na sociedade. Filosofia, Sociologia, História, Antropologia, Psicologia, Enfermagem, Medicina, entre outras áreas, têm se ocupado de desenvolver pesquisas e práticas voltadas para a compreensão e incorporação dos aspectos religiosos e espirituais, tendo em vista que eles estão presentes na vida de uma parcela significativa da população global, podendo interferir na subjetividade e nos comportamentos.

A literatura científica tem evidenciado que, apesar de, na prática, os conceitos de religião, religiosidade e espiritualidade se entrelaçarem, em termos teóricos representam fenômenos distintos que precisam ser considerados.1-4 Esse entrelaçamento dos conceitos ocorre especialmente em contextos como o brasileiro, em que há uma porosidade e multiplicidade de crenças religiosas e espirituais.5

Didaticamente, é necessário apresentar uma breve definição desses conceitos. Destaca-se que essas definições não são engessadas, nem a discussão a respeito delas saturadas, mas têm sido embasadas na ampla variedade de publicações que os autores utilizam para compreender esses fenômenos e de onde partem para desenvolver as suas intervenções e pesquisas em psicologia.

Assim, a conceituação dos três termos, a seguir, organiza-se a partir de publicações de autores importantes na área que pesquisam esse tema, como Cunha e colaboradores,2 Hill e Pargament,6 Koenig e colaboradores,7 Lucchetti e colaboradores,4 Moreira-Almeida e colaboradores,8 Pargament9 e, também, com base nas experiências de atuação profissional e estudos anteriores desenvolvidos pelos autores Rossato e colaboradores,10 Scorsolini-Comin e colaboradores.11

A apresentação aqui realizada não esgota as possibilidades de novas formas de apresentar esses aspectos ou de novas incorporações sobre esses fenômenos, mas serve de norteadora fundamental para os trabalhos que os autores desenvolvem. Assim, eles entendem como

  • espiritualidade — uma forma de vivenciar os aspectos da fé voltados para uma busca pessoal de sentido para a vida e as coisas, uma compreensão sobre questões existenciais, sobre o eu no mundo e as suas conexões com o sagrado ou transcendente, podendo ou não envolver rituais. Está voltada mais para os aspectos pessoais e uma conexão direta entre o eu existencial e o sagrado;
  • religiosidade — a expressão de um sistema de crenças e práticas organizadas por uma doutrina, com ritos e regras estabelecidos, sendo que esses orientam a relação pela qual os sujeitos se vinculam e se comunicam com o Divino (Sagrado/Deus), de modo individual ou compartilhado por uma comunidade;
  • religião — um construto amplo que inclui expressões pessoais e sociais, elementos objetivos e subjetivos, um sistema de crenças e práticas reunidas ou compromissos ideológicos que comportam componentes organizados e institucionais de tradições de fé, envolvendo crenças, práticas e rituais relacionados ao sagrado. Estabelece-se por meio de princípios, crenças, dogmas e/ou rituais adotados por um grupo social.

Os conceitos demonstram, de modo abrangente, como esses diferentes fenômenos podem ser vivenciados pelas pessoas de modo individual ou coletivo. É pertinente evidenciar que as particularidades e variações nessas descrições podem emergir se consideradas as particularidades do ambiente sociocultural em que as pessoas que os vivenciam estão inseridas.12

Em um país predominantemente católico, por exemplo, os modos de vivenciar essas dimensões podem ser diferentes de um país em que o catolicismo não é tão presente e outras formas de religiosidade/espiritualidade (R/E) predominam, como nos casos de países do Oriente Médio, onde o Islã é uma das religiões mais proeminentes e influencia nos costumes e nas crenças; ou mesmo em um país no qual manifestações religiosas/espirituais podem ser proibidas.

Ainda em termos das definições aqui compartilhadas, é importante mencionar que nem sempre as diferenças entre elas são conhecidas no senso comum e até mesmo quando se conversa com determinados profissionais, a exemplo dos psicólogos.13 Nessa perspectiva, embora as distinções sejam importantes do ponto de vista epistemológico, reforça-se a necessidade de que a escuta para essas expressões é mais premente do que o correto endereçamento dos termos.

É também por essa razão que a literatura científica vem reconhecendo que o cotejamento desses vértices em uma nomenclatura mais ampliada, como a de religião/religiosidade/espiritualidade (R/E) vem se mostrando uma estratégia adequada quando o objetivo é enfatizar os desfechos associados a essa dimensão nas intervenções em saúde, por exemplo.2,13,14

A R/E envolve componentes socioculturais que se entrelaçam com a história da humanidade, influenciando os modos de ser e estar no mundo e presentes na maioria das sociedades.2 No contexto brasileiro, por exemplo, esse fenômeno assume um papel significativo na vida das pessoas, sendo comum perceber as influências nos aspectos subjetivos e comportamentais desde a concepção de uma nova vida até os processos de finitude, com a morte.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, evidenciaram que somente 8% da população brasileira não tinha uma crença religiosa ou espiritual.15 Além disso, o censo demonstrou alterações significativas em relação ao perfil religioso/espiritual da população, especialmente no que se refere ao trânsito religioso/espiritual, com redução do número de católicos e ampliação do número de evangélicos. Tais aspectos são importantes de serem considerados porque a R/E não somente abarca elementos culturais que nos caracterizam como povo, mas também componentes que perpassam as relações sociais e repercutem nas experiências pessoais, educacionais e profissionais.16,17

Assim, é pertinente que, em sua atuação enquanto psicólogos, os profissionais considerem que, no cenário sociocultural em que estão inseridos, historicamente são perpassados aspectos da R/E e, logicamente, tais aspectos repercutem em como os seus pacientes vivenciam os seus processos subjetivos e comportamentais cotidianos. Essas dimensões fazem parte da cultura, dos hábitos, dos costumes e do ambiente comunitário em que estão inseridos, de modo que são componentes inerentes à vida, e, mesmo em situações em que as pessoas não acreditam ou sigam os seus preceitos, ainda assim são afetadas pelas reverberações desse fenômeno.

As repercussões das influências religiosas e espirituais abrangem desde um nível microssocial até contextos macrossociais, perpassando, assim, as relações interpessoais, o campo intrapsíquico e os elementos socioculturais expressos em crenças, valores, emoções e comportamentos.18

Em função dos papéis que assume socialmente na vida individual e coletiva, a R/E é reconhecida como um elemento que interfere na formação da subjetividade, em comportamentos, nos modos como os sujeitos lidam com aspectos do cotidiano, nos vínculos e nas relações, nas normas sociais, nas leis, entre outros aspectos inerentes às condições existenciais das pessoas.11 Globalmente, trata-se de componentes culturais presentes na maioria dos contextos sociais, com impactos positivos e negativos na vida das pessoas.

Essas dimensões regem, determinam e influenciam os costumes e as crenças que direcionam os modos de ser e estar em sociedade, reverberando, por exemplo, nas leis vigentes, mesmo em países em que o Estado é considerado laico, como o Brasil. Assim, alguns aspectos, como contracepção, educação sexual e reprodutiva, aborto, eutanásia, casamento entre pessoas do mesmo sexo, entre outros, por exemplo, serão afetados diretamente pelos aspectos religiosos e espirituais, especialmente pelas crenças fundamentalistas.

As repercussões das influências desses três elementos devem ser consideradas, avaliando, nesse sentido, os seus vieses positivos e negativos na vida individual e coletiva. Se, por um lado, podem ser elementos que promovem acolhimento e amparo, auxiliam no enfrentamento de situações difíceis, dão suporte social para os sujeitos e interferem positivamente no bem-estar e na saúde mental; por outro, podem exacerbar preconceitos, discriminação, fanatismo, segregação, lutas religiosas e espirituais, conflitos interpessoais, e interferir negativamente na saúde mental de modo global.

Desse modo, é pertinente considerar esse território como um campo de ambivalências que precisam ser analisadas e compreendidas, avaliando até em que medida elas podem ser úteis para as pessoas e de que modo elas podem ou não ser aliadas nas ações que os profissionais desenvolvem junto à população.

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