Introdução
Nos últimos anos, com o avanço dos conhecimentos nas áreas de nutrigenética e nutrigenômica, o papel do alimento na vida do indivíduo vem sendo mais bem compreendido. Hoje, sabe-se que o alimento funciona como um modulador do genoma humano, de modo que erros alimentares ou consumo de alimentos não saudáveis podem afetar várias gerações de sua prole. Nesse contexto, a nutrição dos primeiros mil dias, isto é, o período compreendido entre a concepção e os dois primeiros anos de vida, é considerado uma janela de oportunidades tanto para o estabelecimento de hábitos alimentares saudáveis por toda a vida do indivíduo como para a redução do aparecimento de doenças crônicas não transmissíveis na vida adulta.1
A espécie humana contou com a amamentação praticamente em toda sua existência. Dessa forma, parece razoável supor que o leite materno (LMleite materno) é o alimento padrão-ouro para fornecer nutrientes a todos os recém-nascidos (RNs) e lactentes saudáveis e doentes, pela sua excelência nutricional, e, do ponto de vista epigenético, é a fonte ideal de nutrição, permitindo que todo o potencial genético inerente ao indivíduo seja atingido.2,3
Isso ocorre porque a composição do LMleite materno contém os nutrientes necessários para o crescimento da criança, além de diversos fatores bioativos, contribuindo para efeitos benéficos na maturação gastrintestinal, no sistema imune, na diminuição do risco de processos infecciosos e de riscos cardiovasculares e no funcionamento harmonioso do metabolismo, além de resultar em adequado desenvolvimento neurológico e contribuir para o bem-estar psicológico da mãe.4
Os benefícios na saúde em curto e longo prazos atribuídos à amamentação ou à ingestão do leite humano (LHleite humano), na impossibilidade de o RN ir ao seio materno, são derivados de vários estudos clínicos e epidemiológicos.5 Como benefícios em curto prazo, incluem-se, entre outros, a diminuição da mortalidade infantil,6 ao se associar à redução do risco de asma,7 alergias7,8 e diabetes melito tipos I (DM1diabetes melito tipo I) e II (DM2diabetes melito tipo II)9,10 e a menores incidências de doenças infectocontagiosas, como diarreia, infecções respiratórias, otite média aguda (OMA) e infecções do trato urinário (ITUs).11
Além disso, o aleitamento materno (AMaleitamento materno) demonstrou ter efeitos protetores contra o desenvolvimento de doenças não transmissíveis comumente associadas à patogênese inflamatória, como obesidade e doença cardiovascular.1–4
O ato de amamentar também se mostrou benéfico para as mulheres que amamentam, incluindo risco reduzido para o aparecimento de câncer de mama, corpo uterino e ovário e o desenvolvimento de artrite reumatoide (AR) e de doenças cardiovasculares.12
Muitos dos benefícios da amamentação são gradiente–dependentes, isto é, quanto maior a exposição da criança ao LMleite materno e ao ato da amamentação, maiores serão os benefícios. Tais razões são o motivo pelo qual a Organização Mundial da Saúde (OMS), corroborada pelo Ministério da Saúde (MS) do Brasil, recomenda que a amamentação deve iniciar ainda na sala de parto, na primeira hora de vida, ser mantida na forma de aleitamento materno exclusivo (AME), sem adicionar qualquer tipo de alimento sólido/semissólido ou líquidos nos primeiros 6 meses de vida, e, a partir de então, deve-se introduzir a alimentação complementar saudável, mantendo-se também o AMaleitamento materno por dois anos ou mais.13
A utilização do LHleite humano na alimentação do recém-nascido pré-termo (RNPT) com muito baixo peso adquire ainda maior importância, por este apresentar condições iniciais de vida mais vulneráveis. Receber LHleite humano propicia uma melhor adaptação fisiológica para o atendimento das necessidades nutricionais e de modulação imunológica, endócrina e do crescimento e o desenvolvimento dessas crianças, não apenas no início da vida pós-natal, mas ao longo do primeiro ano de vida.4
Dessa forma, o uso do LHleite humano deve ser muito incentivado nas unidades de terapia intensiva (UTIs) e unidades intermediárias, podendo ser ofertados tanto o leite extraído diretamente do seio materno e oferecido de forma imediata ao RN como o proveniente de bancos de leite humano (BLHbanco de leite humanos) — leite humano ordenhado pasteurizado (LHOPleite humano ordenhado pasteurizado).
A preocupação em fornecer nutrientes ao RNPT justifica-se pela necessidade de promover o crescimento e desenvolvimento físicos semelhantes à idade gestacional (IGidade gestacional) intrauterina. Devido às maiores concentrações calóricas, de macronutrientes e de eletrólitos, e às funções de proteção contra infecções e de manutenção da função gastrintestinal, o LHleite humano cru, ordenhado da própria mãe e sem manipulação, é considerado a melhor opção para alimentar o RNPT. O LHleite humano doado devidamente analisado e pasteurizado é a próxima melhor escolha se houver produção láctea insuficiente pela mãe.
Infelizmente, mães de RNPTs têm menos probabilidade de iniciar a expressão do leite, manter a amamentação e fornecer LHleite humano após o nascimento, e a suplementação com fórmula infantil para RNPT é uma prática comum. Nesse âmbito, a atuação dos BLHbanco de leite humanos nas instituições, tanto no incentivo à ordenha precoce do leite como na possibilidade de receber LHOPleite humano ordenhado pasteurizado doado de outras nutrizes, têm relevância, em especial, nas primeiras semanas de vida.
Objetivos
Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de:
- identificar a importância da utilização do LHleite humano da própria mãe e/ou do LHleite humano pasteurizado de mães doadoras como fonte de alimento para RNs;
- identificar os fatores bioativos presentes no LHleite humano;
- reconhecer os efeitos benéficos da ingestão de LHleite humano na prevenção da enterocolite necrosante (ECNenterocolite necrosante), displasia broncopulmonar (DBPdisplasia broncopulmonar), sepse neonatal e retinopatia da prematuridade (ROPretinopatia da prematuridade);
- descrever as técnicas para a implementação prática da utilização de LHleite humano no ambiente da unidade de tratamento intensivo neonatal (UTINunidade de tratamento intensivo neonatal) e/ou unidade de cuidados intermediários.