Objetivos
Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de
- identificar situações clínicas que possam levantar a suspeita de infecção pelo HIV;
- diagnosticar infecção pelo HIV em crianças;
- conhecer as medicações que compõem a terapia antirretroviral (TARV) para a profilaxia da transmissão vertical do HIV;
- ter noções sobre o acompanhamento de crianças expostas ao HIV infectadas e não infectadas;
- descrever as atuais estratégias de prevenção à infecção pelo HIV.
Esquema conceitual
Introdução
O HIV surgiu na África e se disseminou para o resto do mundo na década de 1980.1 O vírus é transmitido, preferencialmente, por meio de contato sexual ou sanguíneo, e os primeiros casos foram descritos entre homens que faziam sexo com homens, em usuários de drogas injetáveis e em pessoas que haviam recebido transfusão de sangue e hemoderivados. Em poucos anos, passou-se a encontrar casos entre mulheres, a partir de transmissão heterossexual, e em crianças, por causa da transmissão vertical durante a vida intrauterina, o parto ou o aleitamento.
O HIV tem grande afinidade por linfócitos auxiliares T CD4 (T CD4+), e a doença causada pelo vírus leva a uma profunda alteração da imunidade, que é afetada de diferentes formas e intensidades. A forma mais grave de apresentação é a síndrome de imunodeficiência adquirida ou aids.
A transmissibilidade do HIV fez com que a aids infelizmente tenha se tornado uma doença que acomete muitas famílias. Nos tempos atuais, portanto, é fundamental que o pediatra esteja preparado para identificar situações clínicas e epidemiológicas em que o diagnóstico da infecção pelo HIV seja uma possibilidade entre crianças e adolescentes.
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Criança do sexo masculino, com 1 ano de idade, procurou o serviço de emergência em março de 2017 com história de hematoquezia e foi internada para investigação.
Os exames laboratoriais mostraram o seguinte:
- plaquetas 6.000cel/mm³;
- leucócitos 14.300/µL;
- neutrófilos 10.100cel/mcl (70%);
- linfócitos 3.200cel/mm³ (22%);
- hemácias 4.900.000/µL;
- hemoglobina 11,6g/dL;
- hematócrito 35,2%;
- volume corpuscular médio (VCM) 71,9.
A conduta adotada consistiu em
- transfusão de 2 unidades de plaquetas;
- solicitação de parecer da hematologia em hospital terciário;
- mielograma em 13/04/2017 sugestivo de púrpura trombocitopênica idiopática (PTI);
- prescrição de prednisolona;
- alta hospitalar com plaquetas = 30.000cél/mm³;
- encaminhamento para acompanhamento em serviço de hematologia pediátrica.
Foi feito o diagnóstico de PTI e, durante o acompanhamento, o paciente apresentou petéquias em dedos de mãos e hematomas em tronco (ombro e dorso), com presença de cicatrizes de prurigo estrófulo. O menino estava em bom estado geral, corado, hidratado, acianótico, anictérico, eupneico em ar ambiente.
Outros exames:
- aparelho respiratório: murmúrio vesicular universalmente audível, sem ruídos adventícios, frequência respiratória (FR) 48irpm, sem esforço respiratório;
- aparelho cardiovascular: ritmo cardíaco regular (RCR) em 2T, bulhas normofonéticas, sem sopros;
- abdome: flácido, indolor à palpação superficial e profunda, peristáltico, não foram palpadas massas ou visceromegalias.
Indicou-se nova internação. Nesse momento, os exames laboratoriais apontavam o seguinte:
- plaquetas 3.000cel/mm³;
- leucócitos 11.900/µL;
- neutrófilos 2.100cel/mcl (18%);
- linfócitos 7.100cel/mm³ (60%);
- hemácias 5.320.000/µL;
- hemoglobina 12,6g/dL;
- hematócrito 38,7%;
- VCM 72,7.
O paciente recebeu imunoglobulina humana (durante cinco dias), transfusão de concentrado de plaquetas e recebeu alta após seis dias.
A criança retornou 23 dias depois, em uso de corticoide e tendo recebido rituximabe por três semanas. A mãe relatou sangramento bucal espontâneo e um pico febril de 38,5ºC nas últimas 24 horas. O paciente se mantinha em bom estado geral, corado, hidratado, anictérico, acianótico, afebril, eupneico, com boa perfusão e pulsos amplos. Apresentava petéquias, equimoses e hematomas no corpo inteiro. O exame físico e laboratorial mostrou o seguinte:
- orofaringe com petéquias em mucosa jugal e palato, sem sangramento ativo no momento;
- aparelho respiratório com murmúrio vesicular universalmente presente e sem ruídos adventícios;
- aparelho cardiovascular com RCR 2T, bulhas normofonéticas, sem sopros;
- abdome globoso, peristáltico, flácido, indolor, baço palpável a 2cm do rebordo costal esquerdo (RCE);
- exames de laboratório em 31/05/2017:
- plaquetas 9.000cel/mm³;
- leucócitos 13.600/µL;
- neutrófilos 9.300cel/mcl (68%);
- linfócitos 3.500cel/mm³ (26%);
- hemácias 4.970.000/µL;
- hemoglobina 12,5g/dL;
- hematócrito 36,3%.
Indicou-se nova internação para o paciente receber transfusão de plaquetas, imunoglobulina humana e prednisolona. Durante essa internação, a mãe, que estava grávida de aproximadamente 13 semanas, apresentou pico hipertensivo, e foi, então, referenciada à unidade materno-infantil do mesmo hospital, onde se descobriu que não estava fazendo acompanhamento pré-natal. Dentre outros exames, fez-se teste rápido (TR) para HIV, que resultou em reagente.
O serviço de doenças infectoparasitárias (DIP) foi chamado para avaliar a criança. Solicitou-se sua carga viral (CV), que foi de 902.627 cópias/mL (log 5,956), LT CD4+ = 847mm³/mL (25%). Iniciou-se TARV com zidovudina (ZDV) + lamivudina (3TC) + lopinavir/ritonavir (LPV/r). Por causa de anemia e plaquetopenia persistentes, trocou-se a ZDV por abacavir (ABC). O paciente fez uso de concentrado de plaquetas por várias vezes, imunoglobulina humana e prednisolona durante o período.
Após 3 meses e 22 dias de internação, mantendo plaquetopenia refratária a despeito de todos os procedimentos, mas sem episódios de sangramento e com a CV reduzida, optou-se pela alta para seguimento ambulatorial com os seguintes resultados laboratoriais:
- CV do HIV 1.475 cópias/mL (log 3,169);
- plaquetas 9.000cel/mm³;
- leucócitos 8.100/µL;
- neutrófilos 2.106cel/mcl (26%);
- linfócitos 4.860cel/mm³ (60%);
- hemácias 3.480.000/µL;
- hemoglobina 9,8g/dL;
- hematócrito 30,5.
A criança fez acompanhamento por quatro anos em consultas com serviço de hematologia pediátrica e doenças infecciosas. Dois meses após iniciar TARV, a CV era de 1.475 cópias/mL (log 3,16) e, apesar da excelente resposta inicial ao tratamento, manteve CV detectável em praticamente todos os exames posteriores. A criança manteve-se clinicamente estável, e o seguimento foi perdido, pois a família solicitou transferência para o Paraná.
A mãe era G4 P3 e foi encaminhada ao serviço de pré-natal especializado. Não há informações sobre pré-natal das três primeiras gravidezes. A CV inicial era de 76.000 cópias/mL e LT CD4+ de 330cél/mm³. Introduziu-se TARV com tenofovir + 3TC + efavirenz, tendo atingido CV indetectável.
Indicou-se cirurgia cesariana na 38ª semana de gestação por causa de pré-eclâmpsia. A mãe deu à luz a uma criança do sexo masculino, Capurro 37s2d, peso de nascimento (PN) 3.620g, comprimento (C) 51,5cm, perímetro cefálico (PC) 36cm, Apgar 6/9, reanimado pela equipe de neonatologia. A criança foi investigada para HIV e apresentou cargas virais indetectáveis ao nascimento, em 6 e em 12 semanas de vida.
Terapêutica do caso 1
Objetivos do tratamento no caso 1
Inicialmente, o objetivo do tratamento foi repor as plaquetas que estavam em número muito baixo e evitar a sua nova destruição com o uso de imunoglobulina humana.
Acertos e erros no caso 1
A conduta inicial estava correta para o diagnóstico de PTI. O maior erro foi não ter incluído o diagnóstico de infecção por HIV frente a uma criança com plaquetopenia importante.
Evolução do paciente do caso 1
Após a introdução de TARV, a criança evoluiu com estabilidade e não voltou a apresentar sangramento.
Recursos terapêuticos do caso 1
Iniciou-se esquema de TARV com dois inibidores de transcriptase reversa análogos de nucleosídeo e um inibidor de protease (IP). O esquema é adequado, mas atualmente, em 2022, preconiza-se como tratamento de primeira linha a associação de 2 inibidores de transcriptase reversa e 1 inibidor da integrase.
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J.P.L.M.S., do sexo masculino, teve a sua primeira consulta no ambulatório de infectologia pediátrica em agosto de 2006, aos 22 dias de vida, com história de exposição vertical ao HIV. Mãe, G2P2, iniciou pré-natal no 4º mês de gestação em serviço médico privado e só fez os exames solicitados na última consulta antes do parto por falta de condições financeiras. A criança nasceu de cirurgia cesariana eletiva em hospital privado, com laqueadura de trompas, recebendo alta com 48 horas de vida, em aleitamento materno.
Quinze dias após o parto, a mãe recebeu resultado de exame anti-HIV reativo realizado no final do pré-natal e foi então orientada a suspender a amamentação e a repetir a sorologia para a confirmação do diagnóstico. Ao exame físico, o RN não apresentava alterações. Estava com a vacinação em dia (uma dose de vacina contra hepatite B e vacina antituberculose [BCG]).
Prescreveu-se profilaxia para pneumocistose com sulfametoxazol + trimetoprima para ser iniciada com 30 dias de vida, reforçada a proibição dos aleitamentos materno e cruzado. Forneceu-se fórmula láctea e solicitaram-se CV para o HIV1 e hemograma. O paciente foi encaminhado para vacinação contra poliomielite com vírus inativado a ser aplicada no Centro de Referência para Imunobiológicos Especiais (CRIE).
Os exames solicitados apresentaram os seguintes resultados:
- hemoglobina 10,6g/dL;
- plaquetas 304 mil cel/mm³;
- leucometria 8.600cel/mm³;
- diferencial 0/4/0/0/0/12/75/9.
Apenas aos 3 meses de vida, o resultado da CV ficou disponível, indicando acima de 7 milhões de cópias/mL de sangue. Chegou-se ao diagnóstico de infecção pelo HIV (não sintomática). Solicitou-se segunda CV para a confirmação do diagnóstico e a contagem de linfócitos T CD4+, este último realizado um mês após e seu resultado: 551cel/mm³. Classificou-se o caso como imunossupressão grave e se iniciou TARV com dois inibidores da transcriptase reversa análogos de nucleosídeos (ITRNs) (ZDV e 3TC) e um IP (lopinavir coformulado com ritonavir). Manteve-se profilaxia para Pneumocystis jirovecii.
Ainda em agosto do mesmo ano, fez-se a investigação da família, solicitando-se teste anti-HIV do irmão de 4 anos e do pai, que coabitavam a mesma casa.
O pai, com anti-HIV reagente realizado em no serviço, foi encaminhado para outra unidade de saúde no mesmo município, evoluiu com quadro de depressão, com tentativa de suicídio, e iniciou tratamento psiquiátrico.
O irmão de 4 anos, J.P.M.S., nasceu de parto cesáreo em hospital privado, realizou pré-natal em unidade privada, a mãe não fez teste anti-HIV na gravidez, amamentado ao seio materno até 1 ano de vida. Aos 3 anos, começou a apresentar infecções de repetição, como seis pneumonias, otite, sinusite, impetigo, com algumas hospitalizações. O teste anti-HIV realizado no hospital foi reagente pelas metodologias quimioluminescência e ELFA e confirmado pelo Western Blot. Iniciou-se, então, profilaxia para pneumocistose com sulfametoxazol + trimetoprima 3x/semana, solicitados CV para o HIV1, contagem de linfócitos T CD4+, hemograma e bioquímica. Após um mês, o paciente compareceu ao ambulatório de infectologia pediátrica para o primeiro exame físico, quando apresentava descamação em couro cabeludo, axilas, regiões inguinal e perineal; parótidas aumentadas, linfonodos de 1cm palpados bilateralmente em regiões cervical, submandibular, axilar e inguinal, sem visceromegalias; presença de duas pústulas em joelho direito. O hemograma apontou: Hb 12g/dL; plaquetas 252 mil cel/mm³; leucometria 6.400 cel/mm³ — 0/2/0/0/1/49/40/8.
A CV não foi realizada por falta de kit no laboratório de referência; LT CD4+ = 444 cel/mm³ (17%). Chegou-se ao diagnóstico de infecção pelo HIV já caracterizada por imunodeficiência grave. Prescreveu-se tratamento tópico para dermatite seborreica e impetigo leve, e se acrescentou profilaxia para toxoplasmose e complexo Micobacteryum avium (MAC) com sulfametoxazol + trimetoprima diariamente e azitromicina semanalmente; prescreveu-se TARV com 2 ITRNs e 1 IP; solicitou-se TORCHS.
As equipes de enfermagem, serviço social e psicologia observaram uma criança agitada, que não obedecia a ordens, a mãe muito ansiosa, sem saber controlar o filho, que, segundo ela, só obedecia ao pai, que estava internado em hospital psiquiátrico. A conduta adotada consistiu em tentar identificar alguém na família ou um amigo capaz de ajudar na administração dos medicamentos à criança; oferecer suporte psicossocial à família e orientar sobre o transporte público gratuito para acesso ao serviço de saúde.
Sete dias depois, J.P.M.S. deu entrada na emergência pediátrica apresentando-se febril, taquipneico, com edema periorbitário, lesões eritematovesicocrostosas disseminadas na pele e em mucosa oral. A radiografia de tórax mostrava infiltrado intersticial e alveolar difuso + consolidação em base de hemitórax esquerdo. Não estava fazendo uso de nenhum dos medicamentos prescritos por dificuldades na administração.
Os problemas diagnosticados foram varicela disseminada com infecção bacteriana secundária e pneumonia bacteriana, e o paciente foi transferido para a enfermaria de isolamento, onde foram iniciados aciclovir por via endovenosa, cefazolina e nistatina oral. No dia seguinte, a criança apresentava-se grave, com novas lesões vesiculares, em insuficiência respiratória, oligúrica, com piora da imagem radiológica (todo o hemitórax esquerdo hipotransparente). A conduta adotada consistiu na troca do antibiótico para cefepima + vancomicina, e iniciou-se ventilação mecânica. Algumas horas depois, evoluiu para parada cardiorrespiratória não responsiva às manobras de ressuscitação. A causa mortis declarada foi choque séptico pulmonar.
A conduta adotada foi suporte psicossocial à família, aplicação de imunoglobulina contra varicela-zóster (VZIG) na dose de 125U intramuscular (IM) no paciente J.P.L.M.S., então com 3 meses de vida, e investigação de varicela prévia nos pais.
Terapêutica do caso 2
Objetivos do tratamento no caso 2
Os objetivos do tratamento do caso 2 são realizar diagnóstico e tratamento precoces dos membros de uma família infectada pelo HIV a partir do caso índice, que foi a mãe no puerpério.
Acertos e erros no caso 2
Infere-se que os genitores eram portadores do vírus há pelo menos quatro anos, idade do filho mais velho, que foi infectado por provável transmissão vertical. O diagnóstico da família foi negligenciado em vários momentos, ou seja, durante as duas gestações e durante cada atendimento da criança mais velha, que já tinha sinais e sintomas de aids há pelo menos um ano.
As condutas adotadas no tratamento da varicela e na prevenção dessa infecção nos membros da família foram adequadas. As que foram tomadas para o lactente, tanto para diagnóstico como para tratamento, também foram corretas, excetuando-se a falta de investigação de toxoplasmose para avaliar necessidade de profilaxia primária dessa protozoose, considerando que havia imunossupressão grave.
Evolução do paciente do caso 2
Consequentemente, a evolução fatal da criança de 4 anos se deu pela perda da oportunidade de tratamento em quadro avançado, com imunossupressão grave. Já o lactente recebeu TARV precocemente porque foi investigado antes de apresentar qualquer quadro clínico, preservando um pouco mais o sistema imunológico e garantindo melhor resposta vacinal quando do aumento gradual dos LT CD4+.
Recursos terapêuticos do caso 2
Uma vez diagnosticada a infecção pelo HIV1 em crianças e em adolescentes, deve-se iniciar a TARV, independentemente do quadro clínico e da presença ou não de imunodepressão, imediatamente após a coleta de amostras de sangue, para a quantificação de RNA, a contagem de LT CD4+ e o teste genotípico. Deve-se fazer a classificação clínica e imunológica para tratamentos e profilaxias de doenças oportunistas.
Nos dois casos, os esquemas utilizados seguiram os propostos pelas diretrizes nacionais da época. Conforme os avanços da medicina e a adoção de melhores equipamentos e medicamentos pelo Ministério da Saúde, os protocolos estão sendo constantemente atualizados.