Objetivos
Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de
- revisar os conceitos teóricos sobre o comportamento suicida em crianças e adolescentes;
- estimular a aproximação pediátrica dessa temática e realidade;
- realizar a abordagem clínica inicial do comportamento suicida na infância e adolescência.
Esquema conceitual
Introdução
Talvez devêssemos falar mais aberta e claramente sobre a morte, mesmo que seja deixando de apresentá-la como um mistério. A morte não tem segredos. Não abre portas. É o fim de uma pessoa. O que sobrevive é o que ela ou ele deram às outras pessoas, o que permanece nas memórias alheias.1
Pode parecer estranho e certamente soa desconfortável à maioria dos pediatras iniciar a leitura de um capítulo de um material de atualização terapêutica com uma reflexão sobre morte; mais do que estranho, pode ser até incoerente. Estando o combate à mortalidade infantil na premissa nuclear da pediatria, em um ímpeto de proteção à vida e condução da prole nacional rumo a um futuro próspero de saúde e robustez,2 qual seria o propósito de se colocar a morte em destaque?
Dois argumentos, aqui brevemente apontados, podem iluminar esse questionamento. Em A solidão dos moribundos, o sociólogo alemão Norbert Elias1 tece ponderações sobre o lidar humano com a própria morte, reconhecendo que o estudo da morte é também o estudo da vida e do viver.
A interdição e o silêncio ocidentais e contemporâneos sobre a morte, desse modo, precisam ser compreendidos como um processo que se construiu ao longo do tempo e que facilitou o desenvolvimento de um tabu sobre o tema.1 Refletir sobre a morte tornou-se um desconforto. Mas como fazer quando esse silêncio dificulta a prevenção de novas mortes, como as autoprovocadas?3,4
Nesse horizonte, a partir de uma pesquisa com médicos residentes em pediatria, Silva Filho e Minayo propuseram o conceito de triplo tabu.5 Buscando compreender o incômodo dos pediatras em formação e a estrutura de ensino em que eles estavam inseridos, os autores sugerem que o tabu do comportamento suicida na infância e adolescência encontra-se em um continuum de tabus: tabu da morte < tabu do suicídio < tabu do suicídio infantojuvenil.6–9
Desse modo, uma possível explicação para a imensa dificuldade de esses profissionais manejarem o comportamento suicida na infância e adolescência — uma realidade dura, mas presente no cotidiano assistencial,6–9 — é a complexidade que o tema encerra, sendo necessário lidar com outros tabus antes de se conseguir abordá-lo. Um desafio teórico e prático.
Com isso, justifica-se a reflexão aqui proposta. Combater a morbimortalidade infantojuvenil hoje significa se deparar com uma nova realidade clínica e epidemiológica: uma adaptação — consonante com a transformação humana como espécie e sociedade.10 Observa-se uma pediatria que encontra crianças e adolescentes adoecendo e morrendo com algumas condições diferentes daquelas que estruturaram a clínica pediátrica e que, por isso, demanda desafios e transformações constantes e, por vezes, urgentes.2,3
Espera-se que essa estranheza possa começar a se converter em curiosidade e aprendizado, em uma superação de medos e moralidades que impedem que as crianças sejam ouvidas e compreendidas integralmente, validando todas as formas e expressões de sofrimento e adoecimento.5 Assim, concebeu-se este capítulo.
Reforça-se que, apesar do destaque contemporâneo que as considerações desse material possam apresentar, o comportamento suicida não pode ser entendido como um fenômeno exclusivo desta geração. Pelo contrário, deve ser abordado como fenômeno universal, complexo e multifacetado, reconhecido ao longo da história da humanidade a partir de diferentes perspectivas e paradigmas.4,11,12
Por isso, os diversos campos do conhecimento e da experiência humana podem e devem ser acionados quando se é proposta uma reflexão sobre o suicídio. Mais do que a validação de saberes e da prática transdisciplinar, isso demonstra a complexidade a ser considerada para uma abordagem ética diante de um problema complexo. Para fins didáticos e pragmáticos, o campo biomédico norteia os argumentos apresentados neste capítulo.