Objetivos
Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de
- diagnosticar a lesão renal aguda (LRA) em crianças;
- descrever os critérios diagnósticos da LRA em crianças;
- identificar as possíveis causas da LRA em crianças;
- avaliar história clínica, exame físico e exames laboratoriais de crianças com LRA;
- revisar o manejo e o acompanhamento da LRA em crianças.
Esquema conceitual
Introdução
A súbita perda da função renal é chamada de LRA, manifestando-se pela redução do débito urinário (DU) e pelo aumento da creatinina sérica, sendo esse o principal marcador da disfunção renal. Pode apresentar diversas causas etiológicas, sendo que as principais podem variar — na população geral, as causas pré-renais predominam pela desidratação, enquanto nas unidades de terapia intensiva hospitalar predomina a causa intrínseca pela necrose tubular aguda (NTA). A apresentação, o manejo e o tratamento da LRA em crianças são os objetos de estudo deste capítulo.
|
1 |
Lactente de 10 meses de idade, previamente hígido, deu entrada na emergência com história de diarreia líquida de início há 4 dias, apresentando cerca de 8 episódios por dia de fezes amolecidas explosivas, sem pus, muco ou sangue. Há mais de 12 horas apresentou febre baixa, irritabilidade e redução do DU, procurando atendimento médico.
Ao exame físico, a criança estava (em/com):
- regular estado geral;
- irritada ao manuseio;
- desidratada, com olhos encovados, boca seca, lágrimas ausentes;
- perfusão periférica satisfatória;
- pulso rápido e débil;
- temperatura axilar de 37,6ºC;
- pressão arterial média (PAM) de 66x30(42)mmHg;
- peso de admissão de 8,4kg — o último peso aferido 15 dias antes do início do episódio diarreico era de 9,8kg;
- diurese de 25mL em 6 horas.
Os exames laboratoriais mostraram:
- hemoglobina: 14g/dL;
- hematócrito: 46%;
- leucócitos: 5.000, com 1% de bastões;
- plaquetas: 450.000;
- ureia: 96mg/dL;
- creatinina: 0,8mg/dL (anterior 0,4mg/dL);
- sódio: 144mEq/L;
- potássio: 5,8mEq/L;
- pH: 7,22;
- bicarbonato: 19mEq/L;
- pressão parcial de gás carbônico (PCO2): 35mmHg;
- cloro: 100mEq/L;
- osmolaridade urinária: 520mOsm;
- sódio urinário: 18mEq/L;
- fração de excreção de sódio: <1.
A criança se apresenta desidratada, hipotensa, febril, com aumento da creatinina sérica em 2 vezes o valor inicial — lesão renal ou Acute Kidney Injury Network (AKIN) 2, aumento da hemoglobina (hemoglobina 14g/dL) e plaquetas (450.000 plaquetas), com acidose metabólica (bicarbonato 19mEq/L) e hiperpotassemia (potássio 5,8mEq/L), aumento da ureia (ureia 96mg/dL), osmolaridade urinária de 520mOsm e fração de excreção de sódio menor que 1, que são índices de LRA pré-renal.
Terapêutica do caso 1
Objetivos do tratamento do caso 1
O objetivo do tratamento no caso 1 é restabelecer a função renal e o DU dessa criança.
Condutas no caso 1
Para restabelecer a função renal da criança do caso 1, foram utilizados:
- terapia de reposição oral com 50mL, sem sucesso devido a vômitos;
- antitérmico oral;
- hidratação venosa de expansão com 180mL de solução fisiológica a 0,9% em 30 minutos.
Após nova etapa de hidratação intravenosa (IV) com 180mL de solução fisiológica a 0,9%, a criança apresentou DU de 100mL em 1 hora, choro com lágrimas, temperatura axilar de 36,6ºC e PAM de 50mmHg. Cabe observar que, nesse momento, a criança se encontrava hidratada, ficando em observação para confirmação da recuperação clínica e laboratorial.
Os exames laboratoriais 6 horas após a recuperação do DU apresentavam:
- ureia: 38mg/dL;
- creatinina: 0,3mg/dL;
- sódio: 140mEq/L;
- potássio: 5,0mEq/L;
- pH: 7,37;
- bicarbonato: 24mEq/L;
- PCO2: 38mmHg;
- cloro: 100mEq/L.
A criança foi internada na enfermaria para continuidade do tratamento e monitoramento clínico e laboratorial até a certificação da sua recuperação.
Acertos e erros no caso 1
O caso clínico 1 apresenta um lactente com LRA pré-renal por diarreia, apresentando-se ao exame desidratado com perda de 14,3% do peso anterior (peso atual de 8,4 - peso anterior 9,8 / peso anterior 9,8), hipotenso e febril.
Os exames laboratoriais demonstraram um aumento nos níveis laboratoriais de creatinina de 2 vezes o valor inicial, ureia e hemoglobina, acidose metabólica e hiperpotassemia, com osmolaridade urinária elevada, sódio urinário e fração de excreção de sódio baixos, indicando a LRA pré-renal.
A expansão volêmica foi realizada inicialmente por via oral, porém com baixa aceitação e vômitos mantidos. Talvez o emprego da hidratação venosa estivesse indicado mais precocemente.
Os antitérmicos nos casos de desidratação não estão indicados até a reposição volêmica e a reavaliação da temperatura corporal da criança. Caso se mantivesse febril, o antitérmico estaria indicado.
Evolução do paciente do caso 1
Após 2 etapas de expansão volêmica com solução fisiológica a 0,9%, a criança apresentou recuperação do seu estado de hidratação, evitando, com isso, a progressão para NTA e necessidade de internação em unidade de terapia intensiva (UTI) com possível indicação de terapia renal substitutiva (TRS) dialítica.
Após as expansões volêmicas, os exames laboratoriais demonstraram a normalização dos valores apontados no início do quadro. A observação da criança é fundamental para manter o seu estado de hidratação e evitar a possibilidade de novos episódios diarreicos com risco de nova LRA e retorno à unidade hospitalar.
|
2 |
Menina de 4 anos, previamente hígida, procurou atendimento médico com sua mãe, que informou início da febre alta e desconforto respiratório 4 horas antes da entrada na emergência. O peso de admissão era de 16kg.
Ao exame físico, a criança apresentava(-se):
- hidratada, febril, taquipneica;
- com tiragem intercostal e batimento de asa de nariz;
- hepatomegalia e gemência;
- frequência cardíaca (FC) de 120 bpm;
- frequência respiratória (FR) de 50irpm;
- pressão artérial (PA) de 70x35(46)mmHg
- ausculta respiratória com redução do murmúrio vesicular na base do hemitórax direito e esquerdo, com estertores crepitantes e sibilos;
- radiografia de tórax revelou consolidação alveolar bilateral;
- DU ausente há mais de 12 horas.
A criança foi internada na UTI pela necessidade de suporte ventilatório e manejo hemodinâmico com hidratação e aminas vasoativas.
Os exames laboratoriais mostraram:
- hemoglobina: 10g/dL;
- hematócrito: 28%;
- leucócitos: 15.000, com 12% de bastões;
- plaquetas: 320.000;
- ureia: 102mg/dL;
- creatinina: 1,7mg/dL (anterior 0,5mg/dL);
- sódio: 134mEq/L;
- potássio: 6,5mEq/L;
- pH: 7,12;
- bicarbonato: 16mEq/L;
- PCO2: 30mmHg;
- cloro: 97mEq/L;
- osmolaridade urinária: 320mOsm;
- sódio urinário: 42mEq/L;
- fração de excreção de sódio: >2.
A criança apresentava sepse de foco pulmonar com LRA anúrica — estágio de falência renal ou AKIN 3 (aumento da creatinina maior que 3 vezes o valor basal), acidose metabólica (bicarbonato 16mEq/L), hiperpotassemia (potássio 6,5mEq/L), aumento da ureia (ureia 102mg/dL), osmolaridade urinária de 320mOsm e fração de excreção de sódio maior que 2, que são índices de NTA.
Terapêutica do caso 2
Objetivos do tratamento do caso 2
O objetivo do tratamento era restabelecer a função renal e o DU dessa criança, evitando o surgimento de sinais de sobrecarga hídrica com indicação de TRS.
Condutas no caso 2
As condutas no caso 2 foram as seguintes:
- avaliação do estado de hidratação da criança e necessidade de oferta volêmica, com 400mL/m² subcutâneo (SC) de solução fisiológica a 0,9% + perdas para manutenção da volemia pela restrição hídrica;
- uso de noradrenalina* de 0,05–0,1μg/kg/min até 2μg/kg/min para correção da hipotensão arterial caso mantida após a correção do estado de hidratação. Nesse caso, a menina se apresentava hidratada, recebendo hidratação de manutenção pela restrição hídrica e noradrenalina* de 0,07μg/kg/min;
- correção da acidose metabólica caso mantida por meio da infusão de solução alcalinizante com bicarbonato de sódio IV, calculado pelo déficit de bicarbonato × (0,3 × peso corporal em kg) ou 2–5mEq/kg;
- correção da hiperpotassemia caso mantida após o manejo hídrico e da acidose, apresentando alterações no traçado elétrico no monitor cardíaco por meio do uso de gluconato de cálcio para estabilização da condução elétrica da membrana cardíaca, glicoinsulinoterapia, bicarbonato de sódio e β-2 adrenérgico para internalização de potássio para o meio intracelular, diurético de alça para eliminação do potássio urinário ou resina de troca com poliestireno para eliminação pelo trato digestivo. As doses recomendadas são as seguintes:
- gluconato de cálcio 10% 0,5–1mL/kg em bolo lento;
- glicoinsulinoterapia na dose de 0,5–1g/kg de glicose em associação com 1U/kg de insulina;
- bicarbonato de sódio 1–2mEq/kg;
- β-2 adrenérgico albuterol por nebulização 20mg em 4mL;
- resina de troca com poliestireno de cálcio 1g/kg;
- diurético de alça furosemida* 1mg/kg, caso apresente DU anterior à infusão e mantenha a hiperpotassemia;
- caso a criança apresente sinais de hipervolemia não responsiva ao uso de diurético, acidose metabólica não responsiva à hidratação e alcalinização, hiperpotassemia não responsiva ao tratamento medicamentoso ou sinais de uremia, como encefalopatia urêmica ou sangramentos, haveria indicação para TRS — hemodiálise.
Evolução da paciente do caso 2
Após a estabilização hemodinâmica com o uso de noradrenalina*, os parâmetros hemodinâmicos atingiram PA de 105x65(78)mmHg e FC de 98bpm. Após 2 horas, houve o restabelecimento gradativo do DU.
Durante a internação e após a extubação e suspensão do uso das aminas, a menina recuperou sua função renal no terceiro dia de internação na UTI, com alta para enfermaria no dia seguinte.
Os exames laboratoriais 3 dias após a recuperação do DU apresentavam:
- ureia: 40mg/dL;
- creatinina: 0,5mg/dL;
- sódio: 139mEq/L;
- potássio: 4,8mEq/L;
- pH: 7,42;
- bicarbonato: 25mEq/L;
- PCO2: 42mmHg;
- cloro: 98mEq/L.
Acertos e erros no caso 2
O caso clínico 2 aborda uma menina de 4 anos de idade com LRA com NTA por sepse de foco pulmonar, apresentando-se ao exame hidratada, hipotensa e febril.
Os exames laboratoriais demonstraram um aumento nos níveis laboratoriais de creatinina de 3 vezes o valor inicial, ureia e hemoglobina, acidose metabólica e hiperpotassemia, com osmolaridade urinária reduzida, sódio urinário e fração de excreção de sódio elevados, indicando LRA com NTA.
Foi realizada a manutenção do estado volêmico pela restrição hídrica de 400mL/m² SC + perdas urinária, gastrintestinal, tubos e drenos, associada à oferta de noradrenalina* para estabilização hemodinâmica da menina.
A infusão inicial de 0,05μg/kg/min de noradrenalina* não estabilizou a PAM da menina e, com o aumento para 0,07μg/kg/min, apresentou PAM de 78mmHg, com restabelecimento do DU após 2 horas. Não foi necessário o uso de substâncias, como bicarbonato de sódio venoso, para correção da acidose.
Para a correção do potássio sérico, não foi utilizado gluconato de cálcio para estabilização da membrana cardíaca, diminuindo a potencial arritmia cardíaca, bicarbonato de sódio, glicoinsulinoterapia ou β-2 adrenérgicos para o deslocamento do potássio sérico para o interior das células, ou ainda diuréticos de alça, resina de troca ou diálise para eliminação do potássio do organismo. Todas essas alterações laboratoriais foram resolvidas com a recuperação hemodinâmica da menina, após o restabelecimento da diurese.
Após a recuperação do DU, a menina precisou aumento da oferta volêmica por meio da reposição do DU, com o objetivo de evitar uma nova LRA pré-renal, pelo risco de piora do seu quadro clínico.
Ao final do tratamento antibiótico para a pneumonia, a menina recebeu alta hospitalar para acompanhamento ambulatorial com monitoração da função renal e proteinúria, assim como da pressão arterial sistêmica para prevenir o desenvolvimento e a progressão da doença renal crônica (DRC).
ATIVIDADES
1. O paciente do caso 1 apresentava, no início do quadro de LRA pré-renal, diversos resultados de exames que indicavam a sua etiologia. Comente quais seriam esses exames e seus resultados.
Confira aqui a resposta
No início do quadro de LRA pré-renal, o paciente do caso clínico 1 apresentava ureia mais alta em relação à creatinina (ureia de 96mg/dL, creatinina de 0,8mg/dL), aumento de hemoglobina e plaquetas (hemoglobina de 14g/dL e 450.000 plaquetas), osmolaridade urinária (520mOsm) e fração de excreção de sódio menor que 1%.
Resposta correta.
No início do quadro de LRA pré-renal, o paciente do caso clínico 1 apresentava ureia mais alta em relação à creatinina (ureia de 96mg/dL, creatinina de 0,8mg/dL), aumento de hemoglobina e plaquetas (hemoglobina de 14g/dL e 450.000 plaquetas), osmolaridade urinária (520mOsm) e fração de excreção de sódio menor que 1%.
No início do quadro de LRA pré-renal, o paciente do caso clínico 1 apresentava ureia mais alta em relação à creatinina (ureia de 96mg/dL, creatinina de 0,8mg/dL), aumento de hemoglobina e plaquetas (hemoglobina de 14g/dL e 450.000 plaquetas), osmolaridade urinária (520mOsm) e fração de excreção de sódio menor que 1%.
2. A paciente do caso clínico 2, após a estabilização ventilatória e hemodinâmica, apresentou traçado eletrocardiográfico com elevação da amplitude da onda t com perda da assimetria (onda t em tenda). Quais são as medidas recomendadas para essa criança?
Confira aqui a resposta
As medidas recomendadas para a paciente do caso clínico 2 são as seguintes: gluconato de cálcio 10% 8 a 16mL em bolo lento; glicoinsulinoterapia na dose de 8g de glicose em associação a 16U insulina; bicarbonato de sódio 16 a 22mEq; β-2 adrenérgico — albuterol nebulização 20mg em 4mL; resina de troca — poliestireno de sódio ou cálcio 16g; e diurético de alça — furosemida 16mg, caso apresente DU anterior à infusão e mantenha a hiperpotassemia.
Resposta correta.
As medidas recomendadas para a paciente do caso clínico 2 são as seguintes: gluconato de cálcio 10% 8 a 16mL em bolo lento; glicoinsulinoterapia na dose de 8g de glicose em associação a 16U insulina; bicarbonato de sódio 16 a 22mEq; β-2 adrenérgico — albuterol nebulização 20mg em 4mL; resina de troca — poliestireno de sódio ou cálcio 16g; e diurético de alça — furosemida 16mg, caso apresente DU anterior à infusão e mantenha a hiperpotassemia.
As medidas recomendadas para a paciente do caso clínico 2 são as seguintes: gluconato de cálcio 10% 8 a 16mL em bolo lento; glicoinsulinoterapia na dose de 8g de glicose em associação a 16U insulina; bicarbonato de sódio 16 a 22mEq; β-2 adrenérgico — albuterol nebulização 20mg em 4mL; resina de troca — poliestireno de sódio ou cálcio 16g; e diurético de alça — furosemida 16mg, caso apresente DU anterior à infusão e mantenha a hiperpotassemia.
3. Em relação ao paciente do caso 1, qual seria a conduta caso ele continuasse apresentando temperatura axilar de 37,6ºC após a nova etapa de hidratação IV?
A) Nova expansão volêmica.
B) Antitérmico.
C) TRS.
D) Observação.
Confira aqui a resposta
Resposta incorreta. A alternativa correta e a "B".
O paciente do caso clínico 1 apresentava temperatura axilar de 37,6ºC na admissão, sendo oferecido antitérmico oral. Os antitérmicos nos casos de desidratação não estão indicados até a reposição volêmica e a reavaliação da temperatura corporal da criança. Caso se mantenha febril, aí sim o antitérmico estaria indicado.
Resposta correta.
O paciente do caso clínico 1 apresentava temperatura axilar de 37,6ºC na admissão, sendo oferecido antitérmico oral. Os antitérmicos nos casos de desidratação não estão indicados até a reposição volêmica e a reavaliação da temperatura corporal da criança. Caso se mantenha febril, aí sim o antitérmico estaria indicado.
A alternativa correta e a "B".
O paciente do caso clínico 1 apresentava temperatura axilar de 37,6ºC na admissão, sendo oferecido antitérmico oral. Os antitérmicos nos casos de desidratação não estão indicados até a reposição volêmica e a reavaliação da temperatura corporal da criança. Caso se mantenha febril, aí sim o antitérmico estaria indicado.