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DIABETES MELITO TIPO 1 NA INFÂNCIA: DIAGNÓSTICO, ABORDAGEM E TRATAMENTO

Rodrigo José Custodio

Raphael Del Roio Liberatore Júnior

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Objetivos

Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de

  • discutir a fisiopatologia do diabetes melito (DM) na infância;
  • descrever a epidemiologia do DM na infância, especialmente do DM1;
  • propor o diagnóstico de DM na infância, sobretudo, do DM1;
  • revisar a abordagem terapêutica do DM na infância, em particular, o DM1.

Esquema Conceitual

Introdução

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O diabetes melito (DM) é definido como um distúrbio metabólico complexo, caracterizado fundamentalmente pela presença de hiperglicemia crônica resultante de defeitos na secreção e/ou ação da insulina, tendo como consequências os distúrbios no metabolismo de carboidratos, proteínas e lipídeos. Vale ressaltar que o defeito na secreção e a deficiência na ação da insulina nos tecidos-alvos podem coexistir no mesmo paciente.1

A etiopatologia do DM é variada, no entanto, os mecanismos envolvidos na sua gênese colaboram e permitem a elaboração de uma classificação da doença. Com isso, o DM pode ser classificado em DM tipo 1 (DM1), DM tipo 2 (DM2), outros tipos específicos de diabetes e DM gestacional (DMG).

O DM1 é caracterizado pela produção insuficiente de insulina, que progressivamente evolui para o estado de insulinopenia absoluta. Tal situação é resultante, na maioria dos casos, de um processo autoimune de destruição das células β-pancreáticas, que se instala meses ou anos antes do surgimento do quadro clínico. A produção insuficiente de insulina facilita o desenvolvimento da cetoacidose diabética (CAD).2 Estima-se que entre 15 e 70% dos casos novos de DM1 apresentem CAD na abertura.

A autoimunidade pode ser documentada com a dosagem de autoanticorpos, sendo que, entre eles, destacam-se o anticorpo antidescarboxilase do ácido glutâmico (anti-GAD), o anticorpo antiantígeno de insulinoma tirosina-fosfatase símile 2 (IA2), os anticorpos anti-insulina (IAA) e os anticorpos antitransportador de zinco específico de células beta (ZnT8).

Estima-se que mais de 90% dos pacientes com DM1 tenham um ou mais desses autoanticorpos presentes quando a hiperglicemia de jejum é detectada. Assim, a documentação da autoimunidade por meio da dosagem dos anticorpos praticamente confirma o diagnóstico de DM1.

Há uma distribuição desses anticorpos de acordo com a idade dos pacientes, sendo que a positividade do IAA e do ZnT8 predomina entre os menores de 10 anos de idade. O anti-GAD e o IA2 são mais frequentes nos maiores de 10 anos de idade.

Existem diversos genes relacionados ao DM1, sendo os genes HLA DR3 e DR4 aqueles que colaboram com o maior risco de suscetibilidade genética, principalmente em populações de origem caucasoide. No entanto, hoje em dia, o aumento na incidência de DM1 não foi acompanhado pela contribuição desses genes, um fato que sugeriu maior influência de fatores ambientais nesse incremento.

Aliados à suscetibilidade genética, há os desencadeadores ambientais da autoimunidade direcionada às células beta, cujo conhecimento permanece amplamente restrito. As infecções virais por enterovírus e o vírus da rubéola parecem estar relacionadas ao desenvolvimento do DM1.

O DM2 tem na resistência insulínica sua principal base fisiopatológica, que, associada à resposta secretória insuficiente à resistência, leva ao estado diabético. No início da instalação do DM2, apesar da resistência insulínica, há resposta compensatória suficiente, o que garante glicemias normais.

No entanto, esse processo mantido leva à sobrecarga das células beta, o que resulta na exaustão. Como consequência, a produção de insulina se torna prejudicada devido a esse estado de glicotoxicidade e outros mecanismos. Em função dessa fisiopatologia, outros estados relacionados à resistência insulínica podem estar presentes, como hiperlipemia, hipertensão, acantose nigricans e esteatose hepática.

Os fatores genéticos e ambientais cooperam para a patogênese do DM2. Destacam-se a ingestão de alimentos de alta densidade calórica e a atividade física insuficiente, associada a comportamentos sedentários, como elementos ambientais importantes nessa etiopatogenia.

1

Paciente do sexo masculino, com 5 anos e 1 mês de idade, foi trazido pela avó materna à Unidade Básica de Saúde (UBS) devido à perda de peso há 2 semanas.

A avó não soube precisar a perda, no entanto, referia que na última semana notou aumento da ingestão hídrica e da diurese, que evoluiu com enurese noturna (o paciente já controlava o esfíncter vesical).

Na última semana, o paciente apresentou dor abdominal não localizada e ocasional, porém negou náuseas ou vômitos. Não houve alterações do hábito intestinal, febre, sonolência ou convulsões. Negava outras queixas e apresentava hábito intestinal constipado com frequência evacuatória de uma vez a cada 2 ou 3 dias.

A avó materna era a cuidadora principal e tinha a guarda do paciente desde os seus 2 anos de idade. Os antecedentes obstétricos não eram conhecidos, no entanto, não havia história de prematuridade, doenças ou internações prévias. Da mesma forma, não havia o uso de medicações. O desenvolvimento neuropsicomotor prévio não era conhecido e o atual era adequado.

Não havia casos de DM na família. O paciente habitava uma casa com saneamento básico em zona urbana com a avó, o pai e a tia paterna.

Ao exame físico, o peso do paciente era de 17,15kg (percentil 25–50) e a estatura era de 109cm (percentil 40–50). O paciente apresentava-se em bom estado geral, desidratado de primeiro grau, eupneico, sem alterações em pele ou fâneros.

A frequência cardíaca era de 106bpm, com pulsos palpáveis e tempo de enchimento capilar normal. A frequência respiratória era de 21ipm, com oximetria de pulso de 98% em ar ambiente. O ritmo respiratório era normal e não havia sinais de desconforto.

O abdome estava plano e indolor e apresentava-se com fezes palpáveis em fossa ilíaca esquerda e direita. A genitália masculina era típica, com estadiamento segundo Tanner de G1P1 e escala de coma de Glasgow de 15.

Em função da história clínica e do exame físico do paciente, foi realizada uma glicosimetria capilar, cujo resultado foi de 375mg/dL. A glicemia foi confirmada com uma dosagem sérica, que foi de 387mg/dL. Houve a necessidade de descartar a presença de CAD. Foram colhidas gasometria venosa e urina para verificar a presença de cetonúria. O resultado da gasometria foi de:

  • pH — 7,41;
  • pressão de oxigênio (pO2) — 99,4mmHg;
  • pressão parcial de gás carbônico (pCO2) — 33,2mmHg;
  • HCO3 — 20,3mmol/L;
  • excesso de base (BE) — -3,4;
  • saturação — 97,6%;
  • K — 4,1mmol/L;
  • Na — 135mmol/L;
  • Ca — 1,22mmol/L;
  • Cl — 98,9mmol/L;
  • lactato — 1,5mmol/L.

O resultado da gasometria excluiu o diagnóstico de CAD. O paciente apresentava-se desidratado, sendo necessária a reidratação intravenosa em 6 horas e programada a coleta de glicosimetrias a cada 2 horas com correções utilizando insulina regular conforme resultados obtidos. Após 2 horas de reidratação, o paciente encontrava-se hidratado, sendo iniciada dieta via oral e prescrita insulina regular antes de cada refeição, conforme a glicosimetria.

Como o paciente permaneceu em bom estado geral e sem intercorrências, foi prescrita insulina NPH na dose de 0,5UI/kg/dia, dividida em duas aplicações (antes do café da manhã e antes de dormir), associada à insulina regular antes das principais refeições, conforme resultado das glicosimetrias de acordo com o seguinte esquema:

  • menor que 70mg/dL — não aplicar insulina regular;
  • se glicosimetria entre 71 e 150mg/dL — aplicar 0,1UI/kg/dose;
  • se glicosimetria entre 151 e 250mg/dL — aplicar 0,2UI/kg/dose;
  • se glicosimetria maior ou igual a 251mg/dL — aplicar 0,3UI/kg/dose.

Foi prescrita dieta para diabético com 100% da fórmula de Holliday.

2

Paciente do sexo masculino, com 1 ano e 2 meses de idade, foi levado à UBS pela mãe, que referiu a presença de poliúria há 15 dias antes do atendimento.

A poliúria foi notada pela troca de fraldas cinco vezes durante as madrugadas. Associadas a esse quadro, a mãe notou também polidipsia no mesmo período e perda de peso importante, porém não soube quantificar com precisão a perda.

A mãe percebeu que o peso atual do filho era o mesmo há 4 meses. Nos 4 dias anteriores ao atendimento na UBS, a mãe notou a presença de desconforto respiratório e taquipneia associados à perda de apetite na última semana.

A mãe referia diversas alergias prévias do paciente (ovo, banana, mamão e azitromicina). O paciente nasceu por parto cesárea, a termo, adequado à idade gestacional, pesando 3,11kg e medindo 48cm de comprimento, com Apgar 8/9.

O paciente evoluiu com desconforto respiratório precoce resolvido sem outras necessidades, permanecendo no alojamento conjunto. No momento da internação, o paciente alimentava-se com fórmula à base de proteína de soja e alimentação complementar. O desenvolvimento neuropsicomotor era normal. As vacinas encontravam-se atrasadas, segundo a mãe devido à alergia ao ovo.

A genitora referiu ser portadora de rim único e hipotireoidismo. Informou também que a avó paterna tinha DM e o pai do paciente era saudável. A família — composta por mãe, pai e criança — morava em casa de alvenaria com saneamento básico.

Ao exame físico, o paciente apresentava-se desidratado, porém consciente, com escala de coma de Glasgow de 15. A frequência cardíaca era de 130bpm e o tempo de enchimento capilar era de 2 segundos. A pressão arterial era de 105x52mmHg. A frequência respiratória era de 48ipm e a oximetria de pulso era de 98% em ar ambiente.

Havia tiragem subdiafragmática e o ritmo era típico de Kussmaul. No entanto, na ausculta torácica, não havia ruídos adventícios. Não havia outros dados dignos de nota. Em função do quadro altamente sugestivo, foram colhidos exames para avaliar a presença de CAD. Os resultados foram os seguintes:

  • glicemia — 530mg/dL;
  • gasometria arterial — pH de 7,2;
  • pO2 — 120mmHg;
  • pCO2 — 12,5mmHg;
  • HCO3 — 4,8mmol/L;
  • K — 3,5mmol/L;
  • Na — 130mmol/L;
  • Ca — 1,49mmol/L;
  • Cl — 98,9mmol/L;
  • lactato — 2,4mmol/L;
  • ureia — 38mg/dL;
  • creatinina — 0,49mg/dL.

O hemograma apresentou:

  • hemoglobina (Hb) — 14,8g/dL;
  • hematócrito (Ht) — 44%;
  • plaquetas — 370.000/μL;
  • leucócitos — 16.500/mm³ (segmentados: 41,2%; linfócitos: 52,2%).

A radiografia de tórax estava sem alterações. O teste para COVID-19 foi negativo.

São critérios diagnósticos de CAD:3

  • hiperglicemia — glicemia maior que 200mg/dL;
  • gasometria venosa — pH menor que 7,3 e/ou HCO3 menor que 15mmol/L;
  • corpos cetônicos positivos — cetonemia maior ou igual a 3mmol/L e/ou cetonúria moderada ou grave.

O paciente preencheu os critérios, assim, o tratamento para CAD foi iniciado com hidratação venosa e, após 1 hora, foram iniciadas as aplicações de insulina regular na dose de 0,1UI/kg/dose a cada hora. Os controles de glicemia, gasometria e eletrolítico foram planejados e realizados sequencialmente.

O acréscimo de potássio à hidratação foi realizado, assim como a adição de glicose, pois o paciente com 4 horas de tratamento apresentou glicosimetria de 256mg/dL. A CAD foi controlada após 13 horas de tratamento, momento no qual foi prescrita dieta para diabéticos fracionada em seis refeições e correções com insulina regular conforme glicosimetrias antes das refeições.

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