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FRAQUEZA DE ORIGEM MUSCULAR

Autores: Wladimir Bocca Vieira de Rezende Pinto, Paulo Victor Sgobbi de Souza, Acary Souza Bulle Oliveira
epub-BR-PROTERAPEUTICA-C9V1_Artigo3

Objetivos

Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de

  • identificar os aspectos clínicos e terapêuticos para as principais miopatias na prática clínica;
  • estabelecer as condutas básicas e específicas frente às principais miopatias;
  • instituir o tratamento das principais miopatias.

Esquema conceitual

Introdução

As miopatias representam um grupo bastante amplo e em expansão de doenças neuromusculares, sendo, em geral, divididas em miopatias adquiridas ou hereditárias. Muitas miopatias, apesar de acometerem fundamentalmente o músculo estriado esquelético, podem levar ao envolvimento multissistêmico da musculatura estriada cardíaca e da musculatura lisa, mostrando a complexidade de manifestações clínicas associadas a tais condições.1–3

Em geral, as miopatias podem originar uma série de manifestações clínicas distintas, que podem ser fixas (permanentes ou progressivas) ou episódicas (agudas). Os sintomas mais comumente relacionados às miopatias envolvem fraqueza muscular (focal ou generalizada), mialgia (focal ou generalizada), atrofia muscular e intolerância ao exercício físico.1–3

Em algumas situações clínicas específicas, a fraqueza muscular pode adotar padrões de acometimento distintos (por exemplo, predomínio proximal, distal ou axial/paravertebral, podendo ser simétrica ou assimétrica) e se relacionar à ptose palpebral ou oftalmoparesia, disfagia e disfonia.1–3

A complexidade envolvida com o diagnóstico das miopatias, muitas vezes, afasta o médico neurologista generalista e o clínico geral da investigação e do tratamento de tais condições clínicas. Contudo, é fundamental a qualquer clínico a identificação adequada dos métodos diagnósticos existentes atualmente (por exemplo, métodos de diagnóstico por imagem, biomarcadores de necrose muscular, testagem genética, métodos bioquímicos, biópsia muscular), das etapas relacionadas a tais investigações e da introdução de terapêutica adequada de forma individualizada.2,3

Do ponto de vista semiológico neuromuscular, destacam-se como principais síndromes neuromusculares no contexto das miopatias síndromes de cinturas (pélvica e/ou escapular), miopatias com predomínio axial (paravertebral e/ou cervical), miopatias com múltiplas contraturas, síndrome de espinha rígida, síndrome do lactente hipotônico (floppy baby), síndrome de rabdomiólise com/sem mioglobinúria (episódica ou recorrente), síndrome de oftalmoparesia com/sem ptose palpebral, síndrome de intolerância ao exercício, miopatias em contexto de paralisia flácida aguda e síndromes umeroperoneais.1–3

A avaliação clínica detalhada e a classificação sindrômica são essenciais para o maior sucesso diagnóstico na investigação de uma suspeita de miopatia.2,3

Os métodos diagnósticos subsidiários anteriormente empregados de forma mais ampla — como a biópsia muscular e os métodos de ensaios enzimáticos (bioquímicos) — ainda continuam sendo empregados em situações mais específicas, contudo, vêm sendo progressivamente substituídos por métodos menos invasivos — como diagnóstico por imagem com ultrassonografia (USG) muscular ou protocolos de ressonância magnética (RM) muscular — e mais específicos e definitivos — como testagem genética por painéis genéticos, sequenciamento genético de nova geração e painéis de autoanticorpos.2,3

Os métodos de imagem — como a RM muscular (por exemplo, whole-body muscle — magnetic resonance imaging [WB–MRI]) — possibilitam, hoje em dia, a detecção de padrões de comprometimento muscular mais específicos (por meio dos grupamentos mais envolvidos em cada paciente) e da definição da gravidade do grau de lipossubstituição (por exemplo, escore de Mercuri) ou de extensão do processo inflamatório e edema observados, evitando a necessidade de biópsias musculares frequentemente com alto custo (por exemplo, imuno-histoquímica) e com achados inespecíficos e inconclusivos.2,3

Os métodos genéticos possibilitam a correlação com aspectos da história natural de outros pacientes, o aconselhamento genético familiar e individual e a definição diagnóstica em casos de dúvida ou indefinição diagnóstica. Os marcadores de autoimunidade no contexto das miopatias podem se correlacionar à existência de contexto paraneoplásico, à tendência para maior ou menor resposta clínica a determinadas terapêuticas e ao maior ou menor envolvimento multissistêmico.2,3

Dessa forma, o raciocínio clínico referente à semiologia neurológica e à investigação apropriada de tais casos se torna elemento essencial no processo de decisão adequada do método terapêutico a ser adotado e à modalidade terapêutica aplicada.1 Assim, serão destacadas neste capítulo as situações clínicas de miopatias que, na prática ambulatorial e emergencial, merecem atenção diante da possibilidade de terapêutica definitiva disponível.

NOTA DA EDITORA: os medicamentos que estiverem com um asterisco (*) ao lado estão detalhados no SUPLEMENTO constante no final deste volume.

1

Paciente do sexo masculino, 46 anos de idade, é admitido inicialmente com quadro clínico de cefaleia progressiva, holocraniana, de baixa intensidade, com aumento de frequência (prévia de 3x/semana até diária), associada a náuseas e intensa sonolência diurna.

No último mês, o paciente passou a apresentar episódios de tontura rotatória transitória (por alguns minutos) e períodos de confusão mental. Há 2 dias, devido à piora do quadro confusional, foi trazido pela família para avaliação clínica. Possui antecedente pessoal de asma na infância. Nos últimos 2 anos, havia passado por avaliação clínica em outros serviços por queixa de fadiga muscular há 3 anos associada à fraqueza muscular para subir escadas (sem mialgia) e para percorrer grandes distâncias. O paciente não apresenta ortopneia ou dispneia paroxística noturna.

Seus antecedentes familiares revelam um pai falecido aos 48 anos com quadro clínico progressivo ao longo de 3 anos de fraqueza muscular, dispneia e amiotrofia generalizada com diagnóstico na época de esclerose lateral amiotrófica (ELA). Sem outros dados disponíveis. Ao exame físico geral, não foram evidenciadas alterações cardiorrespiratórias, tegumentares ou de parâmetros vitais.

Ao exame neurológico, evidenciou-se paciente sonolento, sem disfunções executivas superiores, nervos cranianos preservados, hipotrofia muscular de predomínio proximal, hipotonia global, hiporreflexia global, força muscular (FM) grau III proximal em membros inferiores e superiores, IV distal em membros inferiores e IV distal em membros superiores, com marcada fraqueza muscular axial e cervical. Sem alterações ao exame de coordenação e de sensibilidade.

As principais hipóteses diagnósticas sindrômicas envolvem:2,3

  • síndrome motora (caracterizada por tetraparesia flácida hiporreflexa de predomínio proximal com fenótipo neuromuscular de cinturas e axial);
  • síndrome de hipoventilação alveolar crônica (possível contexto de apneia obstrutiva do sono e/ou hipertensão pulmonar).

Em relação aos grupos etiológicos, foram incluídas:2,3

  • distrofias musculares cintura-membros (LGMD) (do inglês, limb-girdle muscular dystrophy) autossômico recessivas;
  • miopatias inflamatórias de longa evolução;
  • miopatia nemalina esporádica de início tardio (SLONM) (do inglês, sporadic late-onset nemaline myopathy do adulto);
  • miopatias miofibrilares;
  • distrofia muscular de Emery-Dreifuss;
  • miopatias metabólicas com fenótipo progressivo, como a doença de Pompe do adulto (LOPD) (do inglês, late-onset Pompe Disease) e a doença de acúmulo de lipídio neutro (NLSD) (do inglês, neutral lipid storage disease) com miopatia.

Foram solicitados exames complementares admissionais e prévios:

  • exames laboratoriais séricos:
    • creatinofosfoquinase (CPK) sérica de 200 (nl <250);
    • aldolase 3,2 (nl <6,7);
    • hemograma completo com hemoglobina (Hb) de 17,2, hematócrito (Ht) de 52 e restante normal;
    • gasometria arterial sem acidose, mas com pressão parcial de gás carbônico (PaCO2) de 65 e bomba de infusão contínua (Bic) de 18;
    • lactato dentro da normalidade;
    • hormônio tireoestimulante (TSH) de 2,1;
    • tiroxina (T4) livre de 4,1;
  • RM de músculo (coxas e pernas): presença de comprometimento muscular marcante de grupamentos adutores bilateralmente com lipossubstituição e discreto edema associado, bem como lipossubstituição marcante da musculatura paravertebral/axial e da parede abdominal (Figuras 1A a D);
  • biópsia muscular: não foi realizada;
  • eletroneuromiografia (ENMG) de quatro membros e de região paravertebral: presença de padrão miopático leve de predomínio proximal nos quatro membros; presença de descargas miotônicas e descargas repetitivas complexas em região paravertebral lombar; achados discretos em região de miótomos cervicais de fibrilações; ondas agudas positivas;
  • amostra de sangue em papel filtro (DBS) para doença de Pompe: 1,2 (nl <5,1);
    • testagem genética com sequenciamento do gene GAA: presença de duas variantes patogênicas em heterozigose composta no gene GAA, contexto genético definitivo para o diagnóstico da doença de Pompe (glicogenose tipo 2).

FIGURA 1: Exames complementares do caso clínico 1. RM de coxas, pernas e protocolo WB–MRI. Cortes axiais na sequência T1 demonstrando presença de lipossubstituição nos adutores magnos e parcialmente no adutor longo (seta preta) (A) com correspondência de edema em tais grupamentos (seta branca) na sequência de inversão-recuperação com tempo de inversão curto (STIR) (do inglês, short TI inversion-recovery) (B). Estudo das pernas sem alterações significativas (C). Corte axial da região abdominal e lombar na sequência T1 demonstrando lipossubstituição (cabeça de seta branca) da musculatura da parede abdominal e da musculatura axial paravertebral (D). // Fonte: Arquivo de imagens dos autores.

Veja aqui a imagem em 3D.

A imagem diagnóstica realizada no contexto de indivíduo com síndrome de cinturas revelou paciente com lipossubstituição em grupamentos mediais de coxas (em grupos de adutores magno e longo), sem envolvimento distal, em paciente com CPK sérica normal e síndrome clínica de cinturas com hipoventilação alveolar crônica e fraqueza axial e bulbar associada.

A principal suspeita diagnóstica foi de LOPD, sendo tal diagnóstico confirmado diante do perfil dos exames subsidiários realizados.4

2

Paciente do sexo feminino, 56 anos de idade, é admitida inicialmente em contexto de serviço de urgência/emergência com queixa de fraqueza muscular progressiva nos últimos 3 meses associada à mialgia leve.

A fraqueza foi notada inicialmente no primeiro mês para elevar e manter os membros superiores e para carregar objetos, passando a notar maior cansaço para subir escadas, passando após a necessitar de apoio na lateral. Há 15 dias, parou de deambular e passou a notar momentos com tendência à queda do pescoço. Relata que 1 semana antes do início do quadro relatado apresentou por 4 dias febre de 38ºC, coriza hialina, odinofagia e astenia.

A paciente apresenta antecedente pessoal de depressão crônica sem sintomas psicóticos (em uso de amitriptilina 50mg pela noite), insônia de manutenção (em uso de clonazepam 2mg, meio comprimido, pela noite) e levotiroxina 50mcg/dia (pela manhã, em jejum).

A paciente fez uso de sinvastatina há 2 anos para tratamento de dislipidemia (na época, após quadro de mialgia durante 1 mês, interrompeu o uso do medicamento por conta própria; tenta realizar o controle por dieta hipogordurosa). O exame físico geral não revelou alterações nos diferentes aparelhos e sistemas, mostrando parâmetros vitais dentro da normalidade.

Ao exame neurológico, evidenciou-se paciente sem alterações das funções executivas superiores, nervos cranianos dentro da normalidade, discreta hipotrofia muscular de predomínio proximal em membros inferiores, hiporreflexia em membros inferiores, FM grau III proximal em membros inferiores, IV distal em membros inferiores, IV+ proximal de membros superiores e IV+ distal em membros superiores.

O exame de sensibilidade e coordenação estava dentro da normalidade. Não foram observados sinais de irritação meningorradicular.

Dentro do contexto clínico apresentado, trata-se de paciente com quadro de síndrome motora (relacionada à tetraparesia flácida hiporreflexa de predomínio proximal) com fenótipo neuromuscular de síndrome de cinturas e síndrome miálgica, sendo proposta a topografia do músculo estriado esquelético.

Dentro dos grupos etiológicos possíveis, aventaram-se as possibilidades de:

  • etiologia inflamatória — miopatia necrotizante autoimune (anticorpos 3-hidroxi-3-metilglutaril coenzima A [anti-HMG-CoA] redutase, paraneoplásica), dermatomiosite, miopatias inflamatórias associadas a colagenoses;
  • miopatia metabólica — glicogenose tipos 2 e 3, lipidoses musculares, miopatia mitocondrial;
  • miosite infecciosa ou pós-infecciosa;
  • heredodegenerativas — distrofias musculares cintura-membros.

Por se tratar de contexto clínico de paciente com síndrome de cinturas de rápida evolução (subaguda), possível uso de estatina previamente e evento infeccioso recente, foi aventada como principal hipótese diagnóstica a possibilidade de miopatia necrotizante imunomediada (autoimune),2,3 apesar de não ser contexto exclusivo ou excludente das demais possibilidades diagnósticas.

Exames complementares admissionais realizados na internação:

  • exames laboratoriais (séricos):
    • hemograma completo normal;
    • velocidade de hemossedimentação (VHS) de 40;
    • proteína C-reativa (PCR) de 50;
    • CPK de 8.800 (nl <220);
    • aldolase de 8,4 (nl <7,2);
    • transaminase glutâmica-oxaloacética (TGO) de 65 (nl <45);
    • transaminase glutâmica pirúvica (TGP) de 55 (nl <42);
    • fosfatase alcalina, gama glutamiltransferase [gama-GT] e coagulograma dentro da normalidade;
    • TSH de 3,2 e T4 livre de 2,1 (ambos dentro da normalidade);
    • provas reumatológicas: fator antinuclear (FAN), fator reumatoide, citoplasmática-ANCA (c-ANCA), perinuclear-ANCA (p-ANCA), complemento total, CH50, C2, C3, anti-DNA nativo — não reagentes;
  • prova de função pulmonar (espirometria): capacidade vital forçada (CVF) 80% e volume expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1) 82% (decúbito sentado);
  • imagem muscular (protocolo WB–MRI): edema e processo inflamatório em grupamentos dos compartimentos posterior e medial das coxas (de predomínio à esquerda) com mínima lipossubstituição (Figuras 2A a D);
  • ENMG de quatro membros: padrão miopático de predomínio proximal associado a achados de instabilidade de membrana (fibrilação, onda aguda positiva);
  • biópsia muscular de deltoide (em sítio em que estudo neurofisiológico não foi realizado): alterações miopáticas e necrose muscular (Figuras 2A a D);
  • avaliação cardíaca básica:
    • ecocardiograma (ECO) transtorácico prévio mostrou fração de ejeção (FE) de 74%, sem insuficiências valvares e sem disfunções de câmaras cardíacas;
    • eletrocardiograma (ECG) de repouso de 12 derivações: dentro da normalidade;
  • tomografias computadorizadas (TCs) de pescoço, tórax, abdome e pelve com contraste (rastreio paraneoplásico): cisto renal simples; sem outras alterações significativas.

Foi solicitada a realização de anticorpos séricos anti-HMG-CoA redutase e anti-SRP, resultando em testagem positiva em altos títulos para anti-HMG-CoA redutase em altos títulos, confirmando o perfil imune associado à miopatia necrotizante imunomediada.2,3

FIGURA 2: Exames complementares do caso clínico 2. Biópsia muscular de deltoide demonstrando a presença de alterações miopáticas e necrose muscular na coloração de hematoxilina-eosina (A) com correspondência na histoquímica com tricrômio de Gomori modificado (B) e apenas discreto infiltrado inflamatório linfomononuclear. RM de cintura pélvica, coxas e pernas demonstrando discreta hipotrofia muscular de compartimento posterior das coxas na sequência T1 (C) e edema muscular em tais grupamentos e em glúteo máximo e musculatura do assolho pélvico na sequência STIR (D). // Fonte: Arquivo de imagens dos autores.

A conclusão diagnóstica do caso foi de miopatia necrotizante autoimune (imunomediada) com anticorpo anti-HMG-CoA redutase positivo.5

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