Objetivos
Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de
- reconhecer os eventos hemorrágicos comuns na terapia antitrombótica crônica;
- identificar as vantagens e as limitações da terapia antitrombótica após um episódio de sangramento;
- estabelecer o tratamento de pacientes com um evento hemorrágico em uso de terapia antitrombótica.
Esquema conceitual
Introdução
O sangramento é uma complicação frequente tanto em pacientes tratados com anticoagulação oral quanto em pacientes tratados com terapia antiplaquetária. A taxa de sangramento maior ocorre em aproximadamente 5% em um ano em ambos os grupos.1–8
Apesar do risco de sangramento, a terapia antiplaquetária dupla (TAD), que consiste em ácido acetilsalicílico (AAS) com inibidor do receptor P2Y12, permanece a pedra angular do tratamento de pacientes com síndrome coronariana aguda (SCA) e daqueles submetidos a uma intervenção coronariana percutânea (ICP) com implante de stent. Além disso, os inibidores do receptor P2Y12 mais potentes, ticagrelor e prasugrel, aumentam ainda mais o risco de sangramento.9
A duração preferida da TAD após SCA é de 12 meses, mas, em pacientes com alto risco de sangramento, deve-se considerar uma duração mais curta, com um mínimo de um mês em pacientes tratados clinicamente e de até seis meses em pacientes submetidos a uma ICP.10,11
A anticoagulação oral, por sua vez, é indicada para a maioria dos pacientes com fibrilação atrial (FA), para pacientes portadores de próteses valvares mecânicas ou para pacientes com trombofilias diagnosticadas. Em geral, os novos anticoagulantes orais (NACOs) são preferencialmente recomendados por causa do menor risco de sangramento.12 Todavia, nem sempre é possível utilizá-los, como em situações envolvendo pacientes com próteses valvares mecânicas.13,14
O sangramento maior associa-se a um aumento significativo no risco de morte (11%), infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral (AVC), possivelmente porque os preditores de sangramento têm muita sobreposição com os preditores de eventos isquêmicos e por causa da descontinuação de medicamentos antitrombóticos eficazes quando o sangramento ocorre.13,14
Portanto, retomar a terapia antitrombótica após um episódio de sangramento impõe um dilema clínico, que consiste em optar por reiniciar a terapia antitrombótica prematuramente, que pode levar a sangramentos recorrentes, ou aguardar, considerando que o atraso na reinicialização coloca o paciente em risco trombótico aumentado.
O objetivo deste capítulo é apresentar recomendações para aprimorar a tomada de decisão clínica em relação ao tratamento de pacientes com um evento hemorrágico em uso de terapia antitrombótica.
NOTA DA EDITORA: os medicamentos que estiverem com um asterisco (*) ao lado estão detalhados no SUPLEMENTO constante no final deste volume.
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1 |
Paciente do sexo masculino, 67 anos, deu entrada no pronto-socorro queixando-se de sangue na urina há cinco dias. O paciente refere que fez uso de diclofenaco sódico no início do quadro prescrito por um médico para aliviar as dores nos joelhos que frequentemente o incomodavam.
Há cinco anos, o paciente foi submetido a um implante de prótese valvar mecânica aórtica em decorrência de estenose aórtica grave. Desde então, usava varfarina (dose de 5mg de segunda a sexta-feira e 2,5mg aos sábados e domingos) de forma regular.
Ao exame físico, o paciente encontrava-se em bom estado geral, afebril, estava orientado no tempo e no espaço e hidratado. A ausculta pulmonar apresentava murmúrios vesiculares discretamente reduzidos bilateralmente, sem ruídos adventícios. A ausculta cardíaca apresentava presença de click metálico em foco aórtico, sem sopros.
Os exames laboratoriais coletados revelaram o seguinte:
- hemoglobina (Hb) 10,5g/dL;
- razão normalizada internacional (INR) 10,8;
- urina-1 com hematúria importante, sem leucocitúria;
- creatinina 1,3mg/dL;
- ausência de alterações importantes nos demais exames.
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2 |
Paciente do sexo feminino, 77 anos, com história de hipertensão arterial sistêmica (HAS), doença coronariana triarterial com implante de dois stents farmacológicos em artéria descendente anterior e artéria circunflexa duas semanas antes da admissão, divertículos colorretais e tratamento crônico com anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) por causa de dor nas articulações, foi internada no hospital em decorrência de fraqueza, astenia, desmaio, pressão arterial (PA) baixa nas medições domésticas e sangue vivo nas fezes.
Na admissão, a paciente encontrava-se pálida, confusa, com pulso periférico fino. Os sinais vitais evidenciaram
- PA em ambos os membros superiores de 84 x 64mmHg;
- frequência cardíaca (FC) de 115bpm;
- saturação arterial de oxigênio (SaO2) em ar ambiente de 92%;
- ausência de alterações à ausculta cardiopulmonar;
- abdome globoso, flácido, sem visceromegalias, levemente doloroso em flanco esquerdo, descompressão brusca negativa.
A paciente estava em uso de AAS 100mg/dia, clopidogrel 75mg/dia, atorvastatina 40mg/dia, atenolol 25mg/dia, losartana 50mg 2x/dia. Os resultados laboratoriais revelaram Hb de 6,8g/dL.
Uma sonda foi introduzida no estômago para verificar se havia sangramento gástrico, e o resultado foi negativo. Como no caso havia histórico de divertículos, suspeitou-se ser essa a fonte mais provável de sangramento.
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Paciente do sexo masculino, 70 anos, deu entrada no departamento de emergência com queixa de duas a três evacuações diárias com fezes escurecidas há quatro dias.
O paciente nega dor abdominal e febre. Além disso, refere HAS e FA permanente em uso do anticoagulante rivaroxabana.
O exame físico estava sem alterações importantes, exceto presença de sangue em dedo de luva ao toque retal.
Os exames laboratoriais revelaram Hb de 11,2g/dL (prévio de 13,4g/dL), perfil de coagulação alterado — tempo de tromblopastina parcial ativada (TTPA) de 37s e tempo de protrombina (TP) de 14,7s.
A radiografia simples de abdome estava sem alterações. A endoscopia digestiva alta estava sem lesão com foco de sangramento.