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INFECÇÃO POR SARSmiddle east respiratory syndrome-COV-2 NA POPULAÇÃO PEDIÁTRICA

Autor: Daniel Jarovsky
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Introdução

Um dos primeiros relatos da epidemia de inverno de doenças respiratórias infecciosas, sugerindo a sazonalidade dessas infecções, pode ser encontrado na coleção de livros conhecida como Corpus hippocraticum, um registro grego antigo escrito por Hipócrates por volta de 400 a.C.1Desde então, muitos vírus respiratórios foram identificados como causadores de epidemias.

Os avanços notáveis em virologia e imunologia identificaram os agentes etiológicos de tais infecções sazonais. Apesar dos grandes esforços em saúde pública, as epidemias de infecções virais do trato respiratório continuam a ser altamente prevalentes entre as populações suscetíveis e estão associadas a significativas morbidade e mortalidade em indivíduos saudáveis. Desde o início do século XXI, a comunidade global enfrentou diversos surtos de doenças infecciosas emergentes e reemergentes, com grandes ameaças à segurança da saúde, à biodefesa e à economia em todo o mundo.

A ocorrência de surtos de doenças significativas — como a síndrome respiratória aguda grave (em inglês, severe acute respiratory syndrome [SARSmiddle east respiratory syndrome]) originada na China em 2002,2 a pandemia de gripe suína por influenzavírus (H1N1) de 2009 ocorrida no México,3 a síndrome respiratória do Oriente Médio (em inglês, Middle East respiratory syndrome [MERS]) ocorrida na Arábia Saudita em 2012,4o surto da África Ocidental do vírus Ebola (EBOV) no final de 2013,5o surto do Zika vírus (ZIKV) originado no Brasil em 20156e o vírus de Lassa em 2018 na Nigéria7— renovou o interesse no desenvolvimento de estratégias para prevenir, tratar e/ou controlar os vírus emergentes e reemergentes com alto potencial epidêmico.8

No final de 2019, um novo coronavírus foi identificado como a causa de casos de pneumonia na cidade de Wuhan, na China. Chamado de coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (em inglês, severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 [SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2]), por provocar SARSmiddle east respiratory syndrome e se assemelhar geneticamente ao SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-1, esse novo β-coronavírus se disseminou de forma rápida, resultando em uma epidemia pela China, seguida por número crescente de casos em outros países.

Desde o início da pandemia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) enfatizou a necessidade de entender a origem do vírus para compreender melhor o surgimento de novos patógenos e as possíveis exposições. Ao longo de 2020, a OMS continuou a discutir com a China e outros Estados-membros a necessidade de estudar e compartilhar informações sobre as origens do vírus e, em julho de 2020, a OMS e a China iniciaram o trabalho de base para estudos, a fim de melhor compreender as origens do vírus.

O SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2 é o terceiro coronavírus zoonótico altamente patogênico a surgir no século XXI.9Os coronavírus são um grande grupo de vírus de RNA que comumente infectam aves e mamíferos, causando ampla gama de condições patológicas. Esses vírus sofrem mutações e recombinações frequentes, produzindo novas variantes que podem cruzar a barreira das espécies.10

Desde 1960, sete coronavírus foram identificados como causadores de infecções em humanos, entre eles, os coronavírus humanos (HCoVscoronavírus humanos) tipos 229E, OC43, HKU1 e NL63, comuns na população humana e responsáveis por cerca de 15 a 30% das infecções anuais do trato respiratório, e, com frequência, associados a sintomas leves e autolimitados.11Ainda assim, as doenças graves acompanhadas de infecção do trato respiratório inferior também podem ocorrer, especialmente em idosos, recém-nascidos (RNs) e pacientes com condições de saúde e fatores de risco subjacentes.12

Para a constelação de manifestações clínicas e radiográficas causadas por esse vírus, dá-se o nome de doença do coronavírus 2019 (em inglês, coronavirus disease 2019 [COVID-19]), que tomou proporções pandêmicas em fevereiro de 2020. A subsequente pandemia teve como característica, em todas as partes do mundo, o baixo acometimento clínico da faixa etária pediátrica quando comparada aos adultos, sobretudo naqueles com idade superior a 60 anos.

A observação de que as crianças são menos frequentemente infectadas com SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2 e que têm sintomas menos graves é semelhante ao relatado para SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-1 e coronavírus da síndrome respiratória do Oriente Médio (em inglês, Middle East respiratory syndrome coronavirus [MERS-CoVMiddle East respiratory syndrome coronavirus]). No entanto, esse padrão é muito diferente daquele da infecção pela maioria dos outros vírus respiratórios (como vírus sincicial respiratório [VSR], metapneumovírus, parainfluenza ou influenza), para os quais a prevalência e a gravidade são maiores em crianças.

Objetivos

Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de

 

  • contextualizar historicamente a infecção e a pandemia pelo SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2;
  • avaliar o impacto da pandemia de COVID-19;
  • identificar como a COVID-19 se manifesta na população pediátrica;
  • diagnosticar adequadamente a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-Psíndrome inflamatória multissistêmica pediátrica);
  • diferenciar as fases agudas e críticas da SIM-Psíndrome inflamatória multissistêmica pediátrica e de outras doenças;
  • revisar os principais métodos de diagnóstico direto e indireto da COVID-19;
  • solicitar adequadamente os exames de imagem na COVID-19 pediátrica;
  • manejar corretamente a COVID-19 e a SIM-Psíndrome inflamatória multissistêmica pediátrica à luz das evidências mais atuais para a pediatria;
  • reconhecer as plataformas vacinais disponíveis contra o SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2.

Considerações gerais da infecção por SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2 em pediatria

Além da magnitude e gravidade dos casos associados ao SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2, essa pandemia sem precedentes impactou significativamente a dinâmica de circulação dos vírus causadores de infecções respiratórias em todo o planeta e forçou o ser humano a realizar modificações sociocomportamentais como nunca visto.

Evidências recentes sugerem que, se comparadas aos adultos, as crianças provavelmente têm cargas virais semelhantes em sua nasofaringe, apresentam taxas de infecções secundárias um pouco inferiores e podem disseminar o vírus para outras pessoas, como adultos o fazem.13

Em razão das medidas de mitigação da comunidade e do fechamento de escolas, a transmissão do SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2 para as crianças e entre elas pode ter sido reduzida durante a pandemia em 2020. Isso pode explicar sua incidência reduzida em crianças em comparação com adultos. Comparar as tendências de infecções pediátricas antes e depois do retorno às atividades infantis, às aulas presenciais e aos esportes pode melhorar a compreensão sobre a dinâmica das infecções pediátricas.14,15

Crianças de todas as idades podem se infectar pelo SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2, mas a incidência da doença aumenta, de forma proporcional, com a idade.16Independentemente da faixa etária atingida, as crianças parecem ser afetadas significativamente menos do que os adultos e representam apenas 2 a 13% dos casos confirmados.17

É evidente maior acometimento de crianças com idade superior a 14 anos (38%) em comparação a escolares (25%) e pré-escolares (17,5%), assim como as taxas de hospitalização (0,6 a 20%) e mortalidade (0 a 4%) também são desproporcionalmente menores em relação aos adultos.17 O Quadro 1 apresenta as principais hipóteses para essas marcantes diferenças.

Quadro 1

PRINCIPAIS HIPÓTESES PARA MENOR ACOMETIMENTO DE CRIANÇAS POR SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2

Principais aspectos

Descrição

Receptor da ECA2

  • Considerado o principal receptor para a entrada de SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2 nas células humanas, é expresso em quantidades crescentes no epitélio respiratório desde a infância até a idade adulta.
  • Também foi postulada menor afinidade dos receptores da ECA2 para SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2 nas crianças, dificultando ainda mais a entrada viral na célula.

Diferenças no endotélio e na função de coagulação

  • O endotélio em crianças é menos pré-danificado em comparação com adultos, e o sistema de coagulação também é diferente, o que torna as crianças menos propensas à coagulação anormal.
  • Há maior integridade do endotélio arterial nas crianças, evitando, assim, a formação de coágulos após a lesão viral.

Imunidade humoral e celular preexistente de outros coronavírus

  • Possível imunidade cruzada de outros coronavírus não epidêmicos (causadores de resfriados comuns), podendo lhes conferir alguma memória imunológica ao SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2.
  • As possíveis diferenças nas respostas imunes das crianças — que reagiriam ao vírus com mais vigor por meio de uma imunidade inata e com resposta mais eficiente das células Th1 — impediriam a replicação viral (diferentemente dos adultos, em que a imunidade adquirida mais exacerbada levaria a uma tempestade de citocinas, resultando em mais danos teciduais).

ECA2: enzima conversora da angiotensina 2; Th1: T helper type 1.

Fonte: Adaptado de Zimmermann e Curtis (2020).18

As crianças com menos de 1 ano de idade e aquelas com determinadas comorbidades associadas — como imunossupressão, doenças respiratórias crônicas, doenças cardiovasculares, malformações congênitas complexas, síndrome de Down, diabetes melito tipo 1 e anemia falciforme — podem apresentar maior suscetibilidade a quadros graves de COVID-19 e necessidade de hospitalização.19

Entretanto, ainda não está claro se essas condições de base estão associadas a maior gravidade ou redução da tolerância para alta hospitalar (por exemplo, em razão da preocupação com complicações) nas unidades de atendimento médico.15

Variantes emergentes de SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2 de interesse global

As mutações no SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2 vêm gerando variantes que alteram as propriedades do vírus e afetam a resposta à pandemia de COVID-19. Embora as implicações ainda não sejam totalmente claras, os estudos preliminares indicam que, no mínimo, uma mutação comum parece aumentar a eficiência da transmissão.20,21

Uma variante do SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2 com substituição D614G no gene que codifica a proteína Spike (S) surgiu já no final de janeiro ou início de fevereiro de 2020. Durante um período de vários meses, a mutação D614G substituiu a cepa SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2 inicial identificada na China e, em junho de 2020, tornou-se a forma dominante do vírus em circulação global.20,21

Estudos em células respiratórias humanas e em modelos animais demonstraram que, em comparação com a cepa inicial do vírus, a cepa com a substituição D614G aumentou a infectividade e a transmissão. O vírus com a substituição D614G não causa doenças mais graves nem altera a eficácia dos diagnósticos laboratoriais, as terapêuticas, as vacinas ou as medidas preventivas de saúde pública existentes. 20,21

Em dezembro de 2020, um aumento inesperado nos casos de COVID-19 relatados foi atribuído ao surgimento das novas variantes do SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2 no Reino Unido e na África do Sul. Ambas as variantes tinham uma mutação (N501Y) no domínio de ligação ao receptor da proteína S (relatada por aumentar a transmissibilidade), com estimativas variando entre 40 e 70% para o aumento da transmissão. 20,21

Em um desenvolvimento preocupante, outro tripleto de mutações (N501Y, E484K e K417T) em nova linhagem foi identificado em Manaus, no Brasil, conferindo afinidade aumentada de forma semelhante ao sítio de ligação da enzima conversora da angiotensina 2 (ECA2). A Figura 1 resume as principais variantes circulantes no mundo até junho de 2021. 20,21

Figura 1 — Principais mutações associadas às principais variantes de SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2 de relevância global.

Fonte: Wanner (2021).22

O Quadro 2 apresenta as principais variantes do SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2 circulantes no mundo até junho de 2021.

Quadro 2

PRINCIPAIS VARIANTES CIRCULANTES NO MUNDO ATÉ O MOMENTO

Variante

Principais informações

B.1.1.7 (também conhecida como 20I/501Y.V1 ou VOC 202012/01)

  • No Reino Unido, uma nova variante do SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2 surgiu com grande número de mutações, sendo posteriormente detectada em vários países ao redor do mundo.
  • Em janeiro de 2021, os cientistas do Reino Unido relataram evidências que sugerem que a variante B.1.1.7 pode estar associada a um risco aumentado de morte em comparação com outras variantes.

B.1.351 (também conhecida como 20H/501Y.V2)

  • Na África do Sul, outra variante de SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2 emergiu independentemente de B.1.1.7.
  • Assim como B.1.1.7, essa variante possui duas mutações adicionais (E484K e K417N) na proteína S que conferem um potencial escape imunológico para anticorpos.
  • Os casos atribuídos a essa variante foram detectados em vários países fora da África do Sul.

P.1 (também conhecida como B.1.1.248)

  • No Brasil, surgiu uma variante do SARSmiddle east respiratory syndrome-CoV-2 identificada pela primeira vez em quatro viajantes do Brasil testados durante uma triagem de rotina no aeroporto de Haneda, próximo a Tóquio, no Japão.
  • Essa variante é um ramo da linhagem B.1.1.28 e tem 17 mutações exclusivas, incluindo três no domínio de ligação ao receptor da proteína S (K417T, E484K e N501Y).
  • Evidências sugerem que algumas das mutações na variante P.1 podem afetar sua transmissibilidade e seu perfil antigênico, o que pode afetar a capacidade dos anticorpos gerados por uma infecção natural anterior ou por vacinação de reconhecer e neutralizar o vírus.

B.1.427 e B.1.429

  • As variantes da Califórnia ou variantes da Costa Oeste compartilham mutações não sinônimas dos genes codificadores da proteína S e foram observadas durante o período de dezembro de 2020 a fevereiro de 2021, quando a Califórnia passou por grande pico de casos.
  • Até o momento, não há evidências de maior gravidade clínica ou evasão imune decorrente dessas mutações.

Fonte: Adaptado de Wilder-Smith e Freedman (2020);20 Ahmed e colaboradores (2018).21

Os cientistas estão trabalhando para aprender mais sobre essas variantes, sobre a facilidade com que podem ser transmitidas e sobre a eficácia das vacinas autorizadas hoje em dia. As novas informações sobre as características virológicas, epidemiológicas e clínicas dessas variantes estão surgindo rapidamente. Até o momento, não existem evidências de que essas mutações resultem em quadro clínico mais grave em crianças.

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