Objetivos
Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de
- revisar a epidemiologia nacional dos casos de leishmaniose visceral (LV);
- identificar os casos suspeitos de LV com base em sinais, sintomas clínicos e epidemiologia;
- realizar a investigação clínica de casos suspeitos de LV;
- utilizar os recursos diagnósticos para os casos suspeitos de LV;
- propor o melhor tratamento de acordo com fatores de risco para mortalidade e comorbidades;
- notificar os casos confirmados de LV.
Esquema conceitual
Introdução
A leishmaniose se refere a um espectro de doenças parasitárias provocadas por mais de 20 espécies do gênero Leishmania.1,2 Apresenta ampla distribuição no Velho e Novo Mundo e é considerada uma doença tropical negligenciada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), afetando principalmente países na África, Ásia e América Latina.
Em 2018, 77 países foram considerados endêmicos para LV, sendo que seis desses países concentram 90% dos casos.1 Cerca de 96% dos casos nas Américas estão reunidos no Brasil.2
A LV representa um problema de saúde caro para o sistema público de saúde e a sociedade, principalmente por causa de sua perda de produtividade devido à mortalidade prematura.3 Em 2018, a taxa de letalidade associada à LV foi de 8%, representando um aumento de 6% em relação ao ano anterior e à maior letalidade registrada na região desde 2012.4 No mesmo ano, o Brasil registrou 289 óbitos por LV, representando uma taxa de letalidade de 8,9%. O maior número de óbitos ocorreu nas Regiões Nordeste (156), Norte (59) e Sudeste (57), locais em que também se concentra o maior número de casos da doença.5
A distribuição das espécies responsáveis pela LV varia de acordo com o Velho e o Novo Mundo. L. donovani é responsável pela maioria dos casos no Velho Mundo, em áreas endêmicas como Índia, Arábia Saudita, Iêmen e países africanos. A região do Mediterrâneo concentra casos de LV provocados por L. infantum.6
Nas Américas, L. chagasi é relacionada aos casos de LV. No início, era vista como uma espécie diferente, porém, hoje em dia é considerada como L. infantum, provavelmente originada da região do Mediterrâneo, sendo introduzida no Novo Mundo com os primeiros exploradores.6
NOTA DA EDITORA: os medicamentos que estiverem com um asterisco (*) ao lado estão detalhados no SUPLEMENTO constante no final deste volume.
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Paciente do sexo masculino, 54 anos de idade, cor parda, trabalhador rural, natural de Santa Sé (BA) e procedente de Sobradinho (BA), há 1 dia procurou hospital terciário na cidade de São Paulo com história de febre aferida (até 38ºC), de caráter intermitente, iniciada há 3 meses. A febre aparecia de forma mais frequente no período noturno, com melhora após o uso de sintomáticos. Além disso, apresentava inapetência, náuseas e perda ponderal de 15kg no período de 2 meses.
O paciente não apresentava antecedentes pessoais significativos. Negava hipertensão arterial sistêmica (HAS), diabetes melito (DM) ou outras doenças crônicas. Negava cirurgias e internações hospitalares prévias. Negava tabagismo. Referia etilismo (2 a 3 doses de aguardente/dia). Referia uso esporádico de diclofenaco e prednisona por dores ósseas há cerca de 2 anos.
Os sinais vitais do paciente na admissão eram:
- pressão arterial (PA) = 110x80mmHg;
- frequência cardíaca (FC) = 80bpm;
- frequência respiratória (FR) = 18irpm;
- temperatura axilar (TA) = 36,7ºC;
- saturação digital de oxigênio = 97%.
No exame físico, o paciente apresentava regular estado geral (REG), descorado (2+/4+), hidratado, acianótico, anictérico e com boa perfusão periférica. No exame de cabeça e pescoço, não apresentava linfonodos palpáveis em região cervical ou supraclavicular.
A cavidade oral não apresentava alterações significativas. O aparelho respiratório mostrou murmúrio vesicular presente, sem ruídos adventícios. Em exame cardiovascular, observaram-se ritmo cardíaco regular em dois tempos, bulhas normofonéticas e ausência de sopros.
O abdome estava plano, com ruídos hidroaéreos (RHA) presentes, depressível e sem dor à palpação. O hipocôndrio esquerdo estava ocupado, com baço palpável a 2cm do rebordo costal esquerdo (RCE). O fígado estava palpável a 3cm do rebordo costal direito (RCD).
O paciente apresentava-se consciente e orientado em tempo e espaço. Não foram observadas alterações em exame neurológico motor ou sensitivo. Sem sinais de rigidez de nuca.
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Paciente do sexo feminino, 63 anos de idade, cor branca, natural de São João do Rio do Peixe (Paraíba) e procedente de São Paulo há 2 meses, é encaminhada do ambulatório de doenças infecciosas e parasitárias para internação hospitalar para investigação de quadro clínico.
A paciente referia febre há cerca de 6 meses, diária, um ou dois picos por dia, com temperatura máxima aferida de 40ºC, preferencialmente noturna, acompanhada de calafrios e sudorese intensa, com melhora parcial com uso de dipirona.
A paciente também relata emagrecimento de 4kg no período, além de cansaço e fraqueza. Veio para São Paulo para investigação do quadro clínico, já tendo passado em outro serviço ambulatorial, porém até o momento sem diagnóstico.
De antecedentes pessoais, a paciente apresentava HAS com uso irregular de medicação, tabagismo de 25 maços/ano (10 cigarros de palha por dia há 50 anos), além de colecistectomia e correção de hérnia umbilical em 2009.
Os sinais vitais da paciente na admissão hospitalar eram:
- PA = 110x80mmHg;
- FC = 103bpm;
- FR = 20irpm;
- TA = 36,9ºC;
- saturação digital de oxigênio = 93%.
Ao exame físico, a paciente estava em REG, descorada (1+/4+), hidratada, acianótica, anictérica, afebril e com boa perfusão periférica. Não apresentava linfonodos palpáveis no exame de cabeça e pescoço. A cavidade oral estava sem alterações significativas.
No aparelho respiratório, o murmúrio vesicular estava globalmente diminuído, sem presença de ruídos adventícios. O aparelho cardíaco apresentava ritmo regular em dois tempos, bulhas normofonéticas e sem sopros na ausculta. Não foram observados sinais de estase jugular.
O abdome era plano, RHA presentes, sem dor à palpação superficial e profunda. O fígado era palpável a 4cm do RCD e baço palpável a 4cm do RCE, não dolorosos. Foi observado edema de membros inferiores (2+/4+), bilateral e simétrico, sem sinais de empastamento ou dor à palpação de panturrilhas.
A paciente estava consciente e orientada em tempo e espaço. Não foram observadas alterações em exame neurológico motor ou sensitivo. Sem rigidez de nuca.