Objetivos
Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de
- reconhecer as definições da doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA/NAFLD), esteato-hepatite não alcoólica (EHNA) (em inglês, nonalcoholic steatohepatitis [NASH]) e da atual definição da doença hepática gordurosa relacionada à disfunção metabólica (MAFLD) no avanço da compreensão da patogênese da doença;
- propor o diagnóstico da MAFLD, identificando a necessidade de realizar a biópsia hepática e como realizar o acompanhamento desses pacientes;
- estabelecer uma proposta de acompanhamento de pacientes no contexto da MAFLD.
Esquema conceitual
Introdução
A doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA) compreende um amplo espectro de doença hepática. Varia da simples esteatose, passa pela esteato-hepatite não alcoólica (EHNA) e vai até a doença hepática terminal, com cirrose e suas complicações, incluindo o carcinoma hepatocelular (CHC).1,2
Nas últimas décadas, tem-se observado um importante aumento dos casos de DHGNA, tanto pela disseminação do conhecimento acerca da doença e do diagnóstico quanto pela alarmante escalada dos índices de obesidade e afecções da síndrome metabólica (SM), dentre elas, destaca-se o diabetes melito tipo 2 (DM2). Isso motivou sobremaneira pesquisas nesse campo, aprofundando o conhecimento quanto à fisiopatologia e levando, mais recentemente, ao desenvolvimento de consensos e guias para o diagnóstico e a terapêutica, embora um tratamento específico eficaz ainda não esteja claramente estabelecido.
Define-se a DHGNA pela presença de esteatose em mais de 5% dos hepatócitos, de acordo com análise histológica, ou maior do que 5,6% no exame de espectroscopia por ressonância magnética (RM) ou por imagem seletiva quantitativa de gordura/água por RM. O termo EHNA, por sua vez, encontra-se dentro do espectro da DHGNA, mas implica a existência de balonização de hepatócitos e/ou infiltrado inflamatório e abrange, ainda, todo o contínuo de gravidade da doença hepática, com fibrose, cirrose ou mesmo com CHC.1,2
Até o momento, para o diagnóstico de EHNA, é necessária avaliação histopatológica por biópsia hepática.3 Chama a atenção que o aspecto histológico da EHNA é indiferenciável da esteato-hepatite alcoólica, no entanto ocorre em indivíduos cujo consumo diário de álcool é inferior a 20g para mulheres e 40g para homens.1,2
Nas últimas duas décadas, muitas críticas foram feitas sobre a nomenclatura e a definição de DHGNA no que diz respeito não apenas ao papel proeminente que o álcool desempenha na definição, mas também aos impactos negativos da nomenclatura, incluindo banalização, estigmatização e menos consideração da doença na política de saúde.4
Por isso, recentemente, um consenso de especialistas internacionais, da qual as autoras deste capítulo fizeram parte, propôs que o nome da doença fosse alterado de doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA) (em inglês, nonalcoholic fatty liver disease [NAFLD]) para doença hepática gordurosa associada à disfunção metabólica (MAFLD) (do inglês, metabolic dysfunction-associated fatty liver disease).4
A mudança na denominação vai muito além de uma mera revisão semântica e pode ser o primeiro passo que catalisa o processo para conceituar melhor a doença para a promoção da saúde, a orientação ao paciente, a identificação de casos, os ensaios clínicos em andamento e a prestação de serviços de saúde.
Os critérios diagnósticos para a MAFLD são mais abrangentes, simples e independentes de outras doenças hepáticas, incluindo a doença alcoólica. Os critérios utilizados baseiam-se em evidências de esteatose hepática na histologia (biópsia), nos exames de imagem ou confirmados por biomarcadores sanguíneos, em associação a um dos três critérios como sobrepeso/obesidade, presença de DM2 e evidência de desregulação metabólica.
Os pacientes com cirrose, na ausência de histologia típica e que atendam a pelo menos um dos seguintes critérios, também podem ser considerados portadores de MAFLD, em caso de evidência passada ou presente de fatores de risco metabólico que atendam aos critérios diagnósticos de MAFLD, com pelo menos um dos seguintes itens: documentação do MAFLD em uma biópsia hepática prévia e/ou documentação histórica da esteatose por imagem hepática.
Outro critério recente em que se considera também a MAFLD é a concomitância de outra etiologia (etiologia dupla). Anteriormente, a DHGNA-NAFLD era diagnóstico de exclusão. Assim, considera-se atualmente MAFLD se o paciente satisfaz os critérios para MAFLD descritos anteriormente, com a possibilidade de existir qualquer outra causa de doença hepática, como, por exemplo
- uso de álcool definido como consumo superior a 3 doses por dia em homens e superior a 2 doses por dia em mulheres, ou consumo excessivo de álcool (definido como superior a 5 doses para homens e superior a 4 doses para mulheres, consumidas em um período de 2 horas), conforme estabelecido pelo Instituto Nacional de Abuso de Álcool e Alcoolismo (esses limites são derivados de quantidades além das quais uma pessoa corre maior risco de doença hepática relacionada ao álcool e pode exceder a quantidade necessária para modificar a progressão da doença no MAFLD);5,6
- infecção viral (HIV, vírus da hepatite viral B [HBV] e vírus da hepatite viral C [HCV]);
- hepatite autoimune;
- doenças hepáticas herdadas;
- lesão hepática induzida por drogas (DILI) ou outra doença hepática conhecida.
NOTA DA EDITORA: os medicamentos que estiverem com um asterisco (*) ao lado estão detalhados no SUPLEMENTO constante no final deste volume.
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1 |
Paciente do sexo feminino, 58 anos de idade, branca, em acompanhamento há 10 anos na clínica médica por um quadro de SM, caracterizada por DM2, dislipidemia, hipertensão arterial sistêmica e obesidade.
A paciente compareceu à consulta encaminhada ao gastroenterologista/hepatologista por imagem à ultrassonografia (USG) de esteatose hepática e enzima gama-glutamiltransferase (GGT) discretamente elevada (1,5 do valor normal). Estava em uso de metformina, gliclazida, captopril e sinvastatina. Oligossintomática, referia discreto desconforto no hipocôndrio direito à movimentação. A paciente nega tabagismo e refere ser etilista de 3 a 4 taças de vinho durante final de semana.
Nos antecedentes patológicos, havia realizado histerectomia e ooforectomia bilateral há 15 anos por neoplasia de ovário. Passou por menopausa precoce em decorrência da cirurgia ginecológica (sem reposição hormonal).
Nos antecedentes familiares, referia pai e dois irmãos diabéticos e com obesidade.
Ao exame físico, a paciente estava em bom estado geral, hidratada, com mucosas hipocoradas +/4+, anictérica e acianótica. A altura estimada foi de 1,55m e o peso de 70kg, com índice de massa corporal (IMC) de 29kg/m². Os sinais vitais eram
- pressão arterial (PA) de 130 x 80mmHg;
- frequência cardíaca (FC) = 85bpm;
- frequência respiratória (FR) de 18ipm;
- temperatura axilar (Tax) de 36,5°C.
O exame de cabeça e pescoço não evidenciou alterações. Observou-se ausência de spiders ou eritema palmar. O exame do tórax mostrava expansibilidade e frêmito toracovocal preservados. A ausculta pulmonar revelava sons pulmonares fisiológicos em áreas normais; a ausculta do precórdio revelava ritmo regular em dois tempos, com bulhas normofonéticas e ausência de sopros.
O abdome da paciente estava globoso, flácido e indolor. Observou-se hepatomegalia com fígado a 4cm do rebordo costal direito (RCD). Ausência de esplenomegalia ou massas palpáveis no abdome. Os ruídos hidroaéreos estavam presentes. O exame neurológico e o exame motor não apresentavam alterações e os membros inferiores não tinham edemas ou sinais de trombose venosa.
Terapêutica do caso 1
Abordagem diagnóstica no caso 1
A hipótese diagnóstica da paciente do caso 1 foi de DHGNA e SM ou, com nova nomenclatura, MAFLD, pela presença de esteatose à ultrassonografia (USG) de abdome e presença de DM2 e/ou sobrepeso.
Os resultados dos exames laboratoriais do paciente estão na Tabela 1 a seguir.
TABELA 1
RESULTADOS DOS EXAMES LABORATORIAIS DO CASO CLÍNICO 1 |
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Exame |
Resultado |
Exame |
Resultado |
Leucócitos |
3.400/mm³ |
Ferritina/saturação de transferrina % |
760ng/mL/35% |
Hemoglobina (Hb) |
13,4g/dL |
Anti-HCV |
Negativo/negativo |
Plaquetas |
150.000/mm³ |
HBsAg/Anti-HbS |
Negativo/positivo |
Creatinina |
0,6mg/dL |
HBeAg/Anti-HBe |
Negativo/negativo |
Glicemia |
120mg/dL |
Anti-HIV |
Negativo |
Hb Glicada (HbA1c) |
7,4% |
Alfafetoproteína |
2,6ng/mL |
Tempo de protrombina |
100% |
25-OH vitamina D |
20ng/mL |
Razão normalizada internacional (INR) |
1,0 |
Colesterol |
220mg/dL |
Bilirrubina total |
1,5mg/dL |
HDL colesterol |
40mg/dL |
Aspartato aminotransferase (AST) |
48U/L |
LDL colesterol |
160mg/dL |
Alanino-aminotransferase (ALT) |
40U/L |
Triglicerídeos |
170mg/dL |
Gama glutamil-transferase (GGT) |
70U/L |
T4L/TSH |
1mg/mL/2,5µIU/mL |
Albumina |
3,9g/dL |
Cobre sérico/ ceruloplasmina |
80µg/dL/20mg/dL |
Alfa 1-antitripsina |
110 |
Antimicrossoma de fígado/rim |
Negativo |
Fator antinuclear (FAN) |
1/20 |
Antimúsculo liso |
Negativo |
HBsAg: marcador sorológico para hepatite B; Anti-HbS: anti-hemoglobina S; HBeAg: proteína viral da hepatite B; Anti-HBe: anticorpo contra o antígeno e do HBV; LDL: lipoproteína de baixa densidade; T4L: tiroxina livre; TSH: hormônio estimulador da tireoide. // Fonte: Elaborada pelos autores.
Condutas no caso 1
Foram realizados marcadores não invasivos de fibrose hepática:
- NAFLD score >0,675 — risco elevado de fibrose avançada;
- escore de fibrose 4 (FIB4) = 2,93 (>1,45 <3,25) — risco intermediário de fibrose avançada.
Diante desses resultados, que conferem risco de fibrose significativa, solicitou-se elastografia hepática por Fibroscan®, que mostrou rigidez hepática de 9,5kPa com uma taxa de sucesso de 100% (o que correspondendo a uma fibrose F3) e um controle de atenuação controlada (CAP) (do inglês, controlled attenuation parameter) de 311dB/m, o que corresponde a uma esteatose grau III de acordo com Sasso e colaboradores.7
Foi indicada biópsia hepática para a paciente do caso 1 em virtude de os métodos não invasivos sugerirem fibrose significativa (>F2). A histologia mostrou
- esteato-hepatite com estádio III, com presença de balonização moderada;2
- esteatose macrogoticular >66%;3
- infiltrado inflamatório moderado;2
- NAFLD = 7;
- fibrose perissinusoidal;
- portal com formação de septos fibrosos finos (estádio III), com presença de corpúsculos de Mallory-Denk.
Diante do diagnóstico de EHNA com formação de septos (em cirrotização), orientou-se a paciente a uma maior adesão das medidas de mudanças de estilo de vida para reduzir chances de progressão para cirrose, além da introdução de pioglitazona* 30mg/dia (eficácia de redução da esteato-hepatite em estudos randomizados controlados), manutenção da metformina* 2g/dia, atorvastatina* 20mg/dia e losartana* 50mg/dia.
Acertos e erros no caso 1
O relato do caso 1 apresenta uma paciente típica encaminhada por presença de esteatose à USG e com quadro de SM (DM2, dislipidemia, hipertensão arterial e obesidade) associado ao consumo de álcool, preenchendo os critérios diagnósticos para MAFLD, de acordo com a nova nomenclatura.
Na abordagem diagnóstica, utilizaram-se inicialmente estratégias não invasivas para avaliação do grau de comprometimento hepático por meio dos escores FIB4, NAFLD e elastometria hepática. Por causa da indicação de fibrose significativa, indicou-se a avaliação histológica para a definição do tratamento medicamentoso, além de orientações para mudanças do estilo de vida.
Evolução da paciente do caso 1
Na evolução, após um ano de tratamento, a paciente iniciou atividade física, melhorou a adesão à dieta e manteve as medicações. Houve manutenção do IMC, entretanto, realizou uma tomografia computadorizada (TC) de abdome, que mostrou redução da esteatose hepática e ausência de hepatomegalia. Na mesma época, realizou nova elastografia hepática por Fibroscan®, que mostrou uma elastografia de 8,2kPa e CAP de 270dB/m, evidenciando melhora do endurecimento hepático e da esteatose leve (fibrose + inflamação).
ATIVIDADES
1. Com relação ao termo EHNA, assinale a alternativa correta.
a O diagnóstico pode ser realizado no exame de espectroscopia por RM.
b O diagnóstico implica a existência de balonização de hepatócitos e/ou infiltrado inflamatório na histologia.
c O diagnóstico requer avaliação histológica por biópsia hepática e ausência do consumo de álcool.
d O diagnóstico pode ser realizado por USG sugestiva, aumento de enzimas hepáticas e ausência do consumo de álcool.
Confira aqui a resposta
Resposta incorreta. A alternativa correta e a "B".
O termo EHNA encontra-se dentro do espectro da DHGNA, mas implica a existência de balonização de hepatócitos e/ou infiltrado inflamatório e abrange, ainda, todo o contínuo de gravidade da doença hepática, com fibrose, cirrose ou mesmo CHC. Até o momento, para o diagnóstico de EHNA, é necessária uma avaliação histopatológica por biópsia hepática.
Resposta correta.
O termo EHNA encontra-se dentro do espectro da DHGNA, mas implica a existência de balonização de hepatócitos e/ou infiltrado inflamatório e abrange, ainda, todo o contínuo de gravidade da doença hepática, com fibrose, cirrose ou mesmo CHC. Até o momento, para o diagnóstico de EHNA, é necessária uma avaliação histopatológica por biópsia hepática.
A alternativa correta e a "B".
O termo EHNA encontra-se dentro do espectro da DHGNA, mas implica a existência de balonização de hepatócitos e/ou infiltrado inflamatório e abrange, ainda, todo o contínuo de gravidade da doença hepática, com fibrose, cirrose ou mesmo CHC. Até o momento, para o diagnóstico de EHNA, é necessária uma avaliação histopatológica por biópsia hepática.
2. De acordo com os critérios recentes para o diagnóstico de MAFLD e doença hepática alcóolica, consideram-se quais valores de consumo etílico?
a Consumo excessivo de álcool definido como mais de 4 doses para homens em 2 horas.
b Consumo de mais de 4 doses por dia em homens.
c Consumo de mais de 2 doses por dia em mulheres.
d Consumo excessivo de álcool definido como mais de 3 doses para mulheres em 2 horas.
Confira aqui a resposta
Resposta incorreta. A alternativa correta e a "C".
Consideram-se limites para doença hepática de etiologia dupla (MAFLD e álcool) o uso de álcool definido como consumo de mais de 3 doses por dia em homens e mais de 2 doses por dia em mulheres ou consumo excessivo de álcool (definido como mais de 5 doses para homens e mais de 4 doses para mulheres, consumidas por um período de 2 horas).
Resposta correta.
Consideram-se limites para doença hepática de etiologia dupla (MAFLD e álcool) o uso de álcool definido como consumo de mais de 3 doses por dia em homens e mais de 2 doses por dia em mulheres ou consumo excessivo de álcool (definido como mais de 5 doses para homens e mais de 4 doses para mulheres, consumidas por um período de 2 horas).
A alternativa correta e a "C".
Consideram-se limites para doença hepática de etiologia dupla (MAFLD e álcool) o uso de álcool definido como consumo de mais de 3 doses por dia em homens e mais de 2 doses por dia em mulheres ou consumo excessivo de álcool (definido como mais de 5 doses para homens e mais de 4 doses para mulheres, consumidas por um período de 2 horas).
3. Observe as afirmativas a seguir sobre a terapêutica do caso 1.
I. O diagnóstico foi de DHGNA e SM pela presença de esteatose à USG de abdome e pela presença de DM2 e/ou sobrepeso.
II. Os marcadores não invasivos de fibrose hepática foram corretamente realizados em um momento inicial.
III. A paciente recebeu orientações para fazer mudanças do estilo de vida, e essa conduta foi correta.
IV. O quadro da paciente foi agravado pela reposição hormonal.
Quais estão corretas?
a Apenas a I, a II e a III.
b Apenas a II, a III e a IV.
c Apenas a I, a III e a IV.
d A I, a II, a III e a IV.
Confira aqui a resposta
Resposta incorreta. A alternativa correta e a "A".
A paciente do caso 1 havia realizado histerectomia e ooforectomia bilateral há 15 anos por neoplasia de ovário. Além disso, referia menopausa precoce pela cirurgia ginecológica, porém sem reposição hormonal.
Resposta correta.
A paciente do caso 1 havia realizado histerectomia e ooforectomia bilateral há 15 anos por neoplasia de ovário. Além disso, referia menopausa precoce pela cirurgia ginecológica, porém sem reposição hormonal.
A alternativa correta e a "A".
A paciente do caso 1 havia realizado histerectomia e ooforectomia bilateral há 15 anos por neoplasia de ovário. Além disso, referia menopausa precoce pela cirurgia ginecológica, porém sem reposição hormonal.
4. No caso 1, a biópsia hepática
a foi desnecessária.
b foi indicada de maneira inadequada.
c foi indicada em virtude de os métodos não invasivos sugerirem fibrose significativa.
d foi realizada porque a paciente apresentava F4.
Confira aqui a resposta
Resposta incorreta. A alternativa correta e a "C".
Indicou-se biópsia hepática no caso 1 em virtude de os métodos não invasivos sugerirem fibrose significativa (>F2).
Resposta correta.
Indicou-se biópsia hepática no caso 1 em virtude de os métodos não invasivos sugerirem fibrose significativa (>F2).
A alternativa correta e a "C".
Indicou-se biópsia hepática no caso 1 em virtude de os métodos não invasivos sugerirem fibrose significativa (>F2).
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2 |
Paciente do sexo masculino, 43 anos de idade, cor branca, casado, mecânico, procura o ambulatório encaminhado de outro serviço com história de ter recebido o diagnóstico de hepatite B há 10 anos ao realizar doação de sangue. Há três anos, iniciou tratamento antiviral com tenofovir para hepatite B. Sempre esteve assintomático.
O paciente nega ter familiares com hepatites, doença crônica hepática ou CHC. Refere que já fez rastreamentos para hepatite B e todos apresentaram sorologias negativas. Além disso, refere que já é vacinado para hepatite B. No ano passado, foi submetido a uma biópsia hepática que mostrou alterações arquiteturais 1, atividade inflamatória parenquimatosa 2, periportal 2, portal 2 e presença de esteato-hepatite.
O paciente nega cirurgias, hemotransfusão, tatuagem ou uso de piercing. Além disso, nega tabagismo e parou etilismo há três anos (bebia cerveja aos finais de semana, de quatro a seis latas por final de semana). Nega outras comorbidades, nega uso de medicamentos de forma crônica, além do antiviral.
Ao exame físico, o paciente encontrava-se em bom estado geral, normocorado, hidratado, eupneico e afebril. A altura estimada foi de 1,64m e o peso de 77kg (IMC = 28,62kg/m²). Os seus sinais vitais foram
- PA de 110 x 60mmHg;
- FC de 72bpm;
- FR de 12ipm;
- Tax de 36,8ºC;
- saturação digital de oxigênio (SatO2) de 98%.
O exame de cabeça e pescoço, tórax (campos pleuropulmonares e precórdio) não mostraram alterações. Constatou-se ausência de spiders, ginecomastia ou eritema palmar. O abdome do paciente estava globoso, flácido e indolor. Não foram palpadas massas ou visceromegalias, e os membros superiores e inferiores também não apresentaram alterações.
Terapêutica do caso 2
Objetivos do tratamento no caso 2
Os objetivos do tratamento no caso 2 são os seguintes:
- manter a carga viral do HBV indetectável;
- normalizar as enzimas hepáticas;
- negativar o antígeno e da hepatite B (AgHBs) (promover cura funcional);
- reduzir o peso em 10%;
- evitar a progressão para cirrose.
Condutas no caso 2
Foi realizada a notificação, solicitado perfil sorológico completo para HBV, avaliação de enzimas, sorologia para HIV, HCV e hepatite A (HAV), função hepática e renal, perfil lipídico, glicemia e insulina de jejum e HbA1c. Solicitaram-se USG de abdome, elastometria hepática e carga viral do HBV. Os exames solicitados mostraram
- USG de abdome evidenciando fígado de dimensões normais, com contornos regulares e bordos finos (aumento difuso da ecogenicidade do parênquima hepático, sem sinais de hipertensão portal ou lesões focais);
- elastometria hepática por Fibroscan® mostrando rigidez hepática de 7,6kPa (o que corresponde a um grau de fibrose F2);
- CAP de 302dB/m indicando esteatose grau III de acordo com Sasso e colaboradores;7
- endoscopia digestiva alta normal.
A Tabela 2 a seguir apresenta os resultados dos exames laboratoriais do paciente do caso 2.
TABELA 2
RESULTADOS DOS EXAMES LABORATORIAIS DO CASO CLÍNICO 2 |
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Exame |
Resultado |
Exame |
Resultado |
Leucócitos |
5.360/mm³ |
Ferritina |
1.056ng/mL |
Hb |
17,5g/dL |
Saturação de transferrina % |
40% |
Plaquetas |
105.000/mm³ |
Anti-HCV |
Negativo/Negativo |
Creatinina |
0,95mg/dL |
HBsAg/Anti-HBs |
Positivo/ Negativo |
Glicemia |
91mg/dL |
HBeAg/Anti-HBe |
Negativo/Positivo |
HbA1c |
5,5% |
Carga viral do HBV |
Indetectável |
Insulina |
22,4µU/mL |
Anti-HIV |
Negativo |
Alfafetoproteína |
2,6 ng/mL |
Anti-HAV IgG |
Positivo |
Tempo de protrombina % |
89% |
Anti-HAV IgM |
Negativo |
INR |
1,07 |
25-OH Vitamina D |
22ng/mL |
Bilirrubina total |
0,75mg/dL |
Colesterol |
193mg/dL |
AST |
45U/L |
HDL colesterol |
41mg/dL |
ALT |
81U/L |
LDL colesterol |
135mg/dL |
GGT |
45U/L |
Triglicerídeos |
86mg/dL |
Albumina |
4,6g/dL |
T4L/TSH |
1,1mg/mL/2,5µIU/mL |
Alfa 1-antitripsina |
110 |
Cobre sérico |
62µg/dL |
FAN |
1/20 |
Ceruloplasmina |
19mg/dL |
Antimúsculo liso |
Negativo |
Antimicrossoma de fígado/rim |
Negativo |
// Fonte: Elaborada pelos autores.
Os marcadores não invasivos de fibrose mostraram o seguinte:
- NAFLD score: >0,675 — risco elevado de fibrose avançada;
- FIB4: 2,05 (>1,45 <3,25) — risco intermediário de fibrose avançada;
- homeostatic model assessment (HOMA-IR): 5.
Diante do diagnóstico de hepatite crônica B AgHBe negativa em tratamento com antiviral tenofovir com carga viral indetectável, buscou-se avaliar causa concomitante de enzimas hepáticas alteradas. Perante critérios clínicos de presença de sobrepeso, evidências nos exames de imagem, marcadores não invasivos de fibrose indicando presença de fibrose avançada e de esteato-hepatite na histologia, chegou-se ao diagnóstico de esteato-hepatite.
Manteve-se tratamento antiviral com tenofovir 300mg/dia, introduziram-se N-acetil cisteína 600mg 2x/dia e metformina* 850mg/dia. Orientou-se o paciente quanto à necessidade de fazer mudanças no estilo de vida (dieta e exercícios físicos para reduzir o peso em 10%).
A seguir, analisa-se a conduta adotada no caso clínico 2.
Abordagem diagnóstica
A DHGNA é usualmente assintomática. Em geral, os pacientes não apresentam queixas nos estágios iniciais da doença e somente iniciam sintomas, como fadiga, desconforto no quadrante superior direito do abdome, perda de peso e fraqueza, quando a doença já está mais avançada ou há a presença de cirrose.
A doença hepática é muitas vezes descoberta acidentalmente durante exames laboratoriais de rotina que revelam concentrações aumentadas de alanino-aminotransferase (ALT), aspartato aminotransferase (AST) e/ou GGT, ou durante o acompanhamento e a investigação de pacientes com comorbidades que representam fatores de risco para desenvolvimento da DHGNA, como obesidade, DM2, hipertensão arterial, apneia do sono, menopausa e síndrome dos ovários policísticos.
A anormalidade mais comum no exame físico de pacientes com doença hepática é o sobrepeso (IMC >25kg/m²), presente em cerca de 56 a 79% dos casos, seguido de hipertensão e adiposidade visceral. No entanto, tem-se observado que indivíduos com DHGNA e com IMC dentro da normalidade também podem apresentar adiposidade visceral.
Um estudo recente demonstrou8,9 que a hepatomegalia ocorre em 10 a 20% dos pacientes com DHGNA como apresentação inicial. Os sinais e sintomas de insuficiência hepática, como spider angiomata, ginecomastia e eritema palmar, ocorrem menos frequentemente do que em outras hepatopatias crônicas, embora a esplenomegalia possa ocorrer em até 25% dos pacientes na época do diagnóstico.
O diagnóstico DHGNA e mais recentemente pela MAFLD, pela presença de esteatose à biópsia hepática ou ao exame de imagem, associada a comorbidades metabólicas como obesidade, diabetes ou anormalidade que demonstre disfunção metabólica (Figura 1).
Em decorrência da sua ampla disponibilidade e do baixo custo, a USG de abdome é o exame tido como de primeira linha. No entanto, deve-se salientar que a USG tem baixa sensibilidade para a detecção de esteatose quando essa condição afeta menos de 20% do fígado ou em indivíduos com obesidade classe III (IMC >40kg/m²). O exame de imagem considerado ideal para a detecção de DHGNA é a espectroscopia por RM, no entanto é dispendioso e utilizado apenas em centros especializados e para fins de pesquisa.
A Figura 1 apresenta critérios diagnósticos para a MAFLD.
FIGURA 1: Critérios diagnósticos propostos para a MAFLD. // Fonte: Adaptada de Eslam e colaboradores (2020).4
Para avaliação da fibrose, existem diversos escores clínicos laboratoriais validados em diversas populações para diagnóstico de fibrose avançada ou ausência de fibrose. Recentemente, foram mais bem validados o Fibrosis-4 (FIB-4) e o NAFLD Fibrosis Score (NFS), que são de baixo custo e de fácil acesso para uso clínico em pacientes com DHGNA.5–7,10
Esses sistemas de escores não invasivos para avaliar fibrose demonstraram ser altamente precisos para distinguir fibrose avançada, categorizada como estágio 3 e 4 (F3-F4) pelo sistema de escore histológico, das formas mais leves. No entanto, esses métodos são influenciados pela idade e pelo IMC e perdem especificidade em pacientes obesos10 e com idade abaixo de 35 e acima de 65 anos. Nessas situações, devem-se utilizar pontos de corte ajustados, com cautela na interpretação dos resultados.11
Para superar essas dificuldades, um escore não invasivo de fibrose, denominado Hepamet, foi desenvolvido e validado recentemente em uma população de 2.452 pacientes com DHGNA de vários centros médicos (Espanha, Itália, França, Cuba e China). O Hepamet compreende parâmetros demográficos, antropométricos e laboratoriais simples para prever fibrose avançada e cirrose, com resultados mostrando melhora na acurácia e redução de resultados indeterminados quando comparados ao FIB-4 e ao NFS, sem influência da idade e do IMC.12
Entre os métodos de imagem, destaca-se a ultrassonografia (USG) no diagnóstico e no acompanhamento dos pacientes com DHGNA. A avaliação com USG hepática e função hepática é importante para determinar o estágio da doença hepática. A USG pode mostrar aumento da ecogenicidade hepática que pode ser decorrente da presença de fibrose e/ou esteatose hepática, além de avaliar a presença ou não de hipertensão portal (sinais avaliados pelo aumento do calibre das veias porta, esplênica e mesentérica superior e tamanho do baço). A elastografia hepática pode ser muito útil para diferenciar a presença de fibrose e esteatose.
A elastografia é um método não invasivo bastante utilizado para avaliação da fibrose. A elastografia transitória (ET) (FibroScan®; Echosens, Paris, França) é amplamente utilizada na hepatite viral crônica. Como outros testes, apresenta melhor acurácia na diferenciação entre fibrose avançada e leve. O CAP pode ser medido por elastografia e tem demonstrado detectar esteatose com boa precisão, embora seja menos confiável para determinar o grau de envolvimento.10
Atualmente, a USG associado à elastografia vem se destacando para o acompanhamento desses pacientes. A elastografia por USG estuda o grau de deformação (ou dureza) do órgão ou da lesão, de modo que, quando há endurecimento do fígado, por fibrose ou cirrose, essa alteração é bem demonstrada na elastografia por USG. A elastografia por RM também pode ser utilizada para a análise de fibrose hepática com acurácia muito boa, mas ainda com custo elevado. Nesse contexto, ainda se considera a biópsia hepática o padrão-ouro para o diagnóstico da DHGNA.
Ainda não há consenso sobre o uso de marcadores de esteatose e fibrose hepática no que diz respeito à eficácia, na tentativa de se evitar a realização da biópsia hepática. Muitos autores sugerem o uso combinado de vários desses métodos de diagnósticos.
A realização da biópsia hepática ainda é necessária para confirmar o diagnóstico de EHNA. A decisão de propor uma biópsia deve ser individualizada e discutida pontualmente com cada paciente.
Um número de achados clínicos associados à EHNA, bem como a presença de fibrose avançada em pacientes com DHGNA, pode facilitar indicação de biópsia hepática, ou seja, pacientes com mais de 45 anos idade, obesidade ou DM2 e relação AST/ALT >1. As indicações para biópsia hepática são enzimas hepáticas alteradas ou escores de fibrose elevados no contexto da esteatose (geralmente vista na USG), além de determinar o tipo predominante de envolvimento hepático em pacientes com doenças concomitantes.
A análise histopatológica ainda é o procedimento ideal para o estadiamento da doença. Os achados típicos de EHNA incluem esteatose, que geralmente é macrovesicular e classificada como um entre três graus — balonização hepatocelular, infiltrado inflamatório lobular misto e fibrose —, inicialmente perissinusoidal, predominantemente em zona 3 (zona centrolobular), embora também possa ser vista na zona periportal.10
A fibrose não é uma condição necessária para a confirmação do diagnóstico de EHNA.10
Além desses achados, pode haver inflamação periportal, vacuolização glicogênica nuclear, megamitocôndrias e corpúsculos de Mallory-Denk em menor quantidade do que a observada na forma alcoólica da doença, que são, em muitos aspectos, idênticos, embora apresentem inflamação lobular mais pronunciada e outras características.10
Considera-se a biópsia hepática o padrão-ouro para o diagnóstico de DHGNA, mas há controvérsias quanto à sua validade. Uma questão é a representatividade do material, dado que o fragmento hepático típico analisado tem um volume aproximado de apenas 1/50.000 do volume total do órgão. Portanto, a extensão do dano tecidual pode ser subestimada, pois o processo de fibrogênese do parênquima é dinâmico e tem distribuição heterogênea.13
Além disso, existe uma variação interobservador na interpretação das lâminas, e pode haver desacordo entre patologistas, especialmente entre aqueles com menos experiência. Vários estudos demostraram que a concordância interobservadores é quase perfeita entre patologistas mais experientes. Portanto, o valor estatístico de kappa para interobservador mostra que essa concordância pode variar de 0,4 a 0,9.13
A biópsia hepática é um procedimento invasivo, traz riscos de complicações graves, que ocorrem em aproximadamente 1% de casos,14 por isso deve ser indicada de forma criteriosa e individualizada.
Com relação às particularidades do caso 2, a prevalência de hepatite B crônica concomitante à MAFLD não é baixa, sendo reportada em de 13,6 a 59,3% dos casos, e o efeito da esteatose hepática na história natural da hepatite crônica B não é clara. A progressão da fibrose na hepatite B crônica ainda é observada em 25% dos pacientes apesar da carga viral controlada.15 A esteatose hepática persistente e intensa aumenta o risco de progressão da fibrose em duas vezes aos 36 meses.
As hepatites virais são doenças de notificação compulsória, ou seja, cada ocorrência deve ser notificada por um profissional de saúde. Esse registro é importante para mapear os casos de hepatites no país e ajuda a traçar diretrizes de políticas públicas no setor.16 A notificação é importante para a instituição porque contribui para a organização do serviço, com relação à previsão de agendamento de retornos, insumos para reagentes laboratoriais para o acompanhamento do paciente (sorologia e carga viral do HBV) e tratamento antiviral.
Para avaliação da hepatite B crônica, o perfil sorológico completo, a carga viral e as enzimas hepáticas auxiliam a determinar se o paciente é portador de hepatite crônica AgHBe positivo ou negativo, necessidade de tratamento antiviral e evolução da doença (controle da replicação viral e melhora dos danos ao parênquima hepático).
Com relação aos demais exames sorológicos, os vírus da hepatite B, C e delta e o HIV apresentam formas de transmissão em comum. Assim a coinfecção com outros vírus pode ocorrer, e a presença concomitante desses vírus pode agravar a atividade inflamatória e a progressão da doença. A pesquisa do vírus HAV é importante também para determinar a necessidade ou não de vacinação para esse tipo de hepatite. Além disso, vale lembrar que o vírus da hepatite C também pode estar associado à presença de esteatose, principalmente o genótipo 3, por isso também precisa ser investigado.17
Acertos e erros no caso 2
No caso 2, o paciente encontrava-se em acompanhamento clínico para o tratamento de hepatite crônica B com tratamento antiviral com resposta virológica (HBV DNA indetectável) e com perda do AgHBs. Apesar do controle da hepatite viral, persistia com níveis de enzimas hepáticas alteradas. A avaliação não invasiva com medida do CAP pelo Fibroscan® auxilia na avaliação desse caso, e a avaliação histológica comprova a presença de esteato-hepatite. Apesar de o controle de peso ter conseguido atingir uma redução em 10%, essa perda não foi sustentada.
A doença gordurosa do fígado associada ao metabolismo é comum, afeta um quarto da população e não tem terapia medicamentosa aprovada. Embora as terapias medicamentosas estejam sendo desenvolvidas, as taxas de resposta até o momento parecem modestas.
A avaliação da fibrose com métodos não invasivos é comumente utilizada para identificar ou excluir fibrose significativa ou avançada em pacientes com doença hepática gordurosa. Entretanto, na presença de duas etiologias (concomitância ou dupla etiologia), a histologia hepática auxilia a avaliar a predominância de uma delas.
Evolução do paciente do caso 2
Na evolução, o paciente do caso 2 apresentou clareamento do AgHBs, reduziu o peso para 71kg (IMC de 26,3kg/m2), mas manteve alterações discretas das enzimas hepáticas por causa de um novo aumento de peso (74kg).