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PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA DO ÓBITO EM DOMICÍLIO

Autores: Aline Camera Cintra, Gilmara Rodrigues dos Santos Correia, Tatiana Maita
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Objetivos

Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de

 

  • refletir sobre o adoecimento como o momento em que emergem demandas multidimensionais;
  • avaliar o óbito em domicílio com olhar fenomenológico;
  • considerar a subjetividade como algo a ser acessado pelos atores envolvidos no óbito em domicílio.

Esquema conceitual

Introdução

“O cuidado somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim. Passo então a dedicar-me a ele; disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de suas conquistas, enfim, de sua vida.” (Leonardo Boff)1

Quando se pensa em óbito em domicílio, vem à mente a origem do cuidado, na idade média, quando as pessoas eram assistidas em seus lares, de forma caritativa e instintiva, por religiosos, familiares e, principalmente, mulheres. Eram tratadas empiricamente com os poucos recursos disponíveis, a exemplo de chás, ervas, compressas, além de rituais, rezas e exorcismos para purificação das suas almas, conforme a interpretação cristã da época, em que o morrer equivalia à salvação. O ambiente era carregado por suas histórias, seus valores e suas memórias.

Os primeiros hospitais surgiram no início do século IV, em resposta à necessidade de instituições para o cuidado do pobre, os xenodochium ou casas de estrangeiros, pois a palavra hospital surgiu no século XII. Esses primeiros hospitais não eram destinados a todos os doentes, mas àqueles que não podiam ser cuidados em suas próprias casas, como os viajantes, pobres, órfãos e velhos. As pessoas de posição e provavelmente a maioria das pessoas medievais eram cuidadas em suas casas, por suas esposas, escravos, pais, filhos ou mulheres que atuavam como enfermeiras nos lares.2

Esse tipo de cuidado, primitivo, sem o aparato tecnológico, faz uma alusão histórica ao cuidado que protegia as pessoas que necessitassem de acolhimento e alívio de sofrimentos: os peregrinos, pobres e enfermos. Notavelmente, houve uma jornada fascinante desse período — com o avanço da medicina, diretamente ligado à história da humanidade — aos dias atuais. Os ambientes sofreram transformações, e os seus lares foram substituídos por hospedarias e posteriormente pelos hospitais, locais aonde as pessoas iam para ser asiladas até a sua morte.

Houve evolução do empirismo à conduta fundamentada no científico, ao crivo da medicina tradicional, hegemonicamente centrada na doença, e aos tempos da medicina moderna, com o modelo de atenção integral à saúde, promovendo mudanças e legitimando a autonomia e a dignidade de vida da pessoa humana.

As mudanças demográficas, epidemiológicas, sociais e culturais que vêm se intensificando, nas últimas décadas, no âmbito mundial, têm levado diversos países a repensar o seu modelo de atenção e as modalidades de cuidados oferecidas, impelidos ora por questões de viabilidade e sustentabilidade econômica dos seus sistemas de saúde, ora pela busca de soluções que promovam maior bem-estar aos usuários e às suas famílias e sejam capazes de reduzir as iniquidades em saúde.3

Nesse cenário, as diversas modalidades de atenção domiciliar (AD) aparecem como soluções interessantes para a reorganização de sistemas ou Redes de Atenção à Saúde (RAS), assim como de assistência social.3 O modelo predominante de atenção à saúde no Brasil ainda é centrado no ambiente hospitalar. Os serviços de AD que surgiram na década de 1960 têm se expandido no país com maior força a partir da década de 1990.4

A publicação da Portaria nº 2.416/1998,5 que definiu requisitos para o credenciamento de hospitais e critérios para a modalidade de internação domiciliar no Sistema Único de Saúde (SUS), abriu portas para outro marco legislativo importante: a sanção, pelo Ministério da Saúde, da Lei nº 10.424, de 15 de abril de 2002,6 que acrescentava à Lei Federal nº 8.080, de 19 de setembro de 1990,7 o atendimento e a internação domiciliar no SUS.

Atualmente, a Portaria nº 825, de 25 de abril de 2016, do Ministério da Saúde/Gabinete do Ministro,8 normatiza o funcionamento do Serviço de Atenção Domiciliar (SAD) no SUS, o qual considera a AD como uma modalidade de atenção à saúde integrada à RAS, priorizando ações de prevenção e tratamento de doenças, reabilitação, paliação e promoção à saúde, com uma continuidade da assistência em domicílio.

Essa breve viagem histórica gera reflexões sobre o conhecimento adquirido, passando por transições ao longo dos séculos, em que a gênese de tudo é o cuidado genuíno. Isso significa que o cuidado possui uma dimensão ontológica, quer dizer, entra na constituição do ser humano. É um modo de ser singular do homem e da mulher.

Lembrar

Sem cuidado, a pessoa deixa de ser humana. Cuidado significa, então, desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção e bom trato. Trata-se, como se depreende, de uma atitude fundamental. Como dito, o cuidado implica um modo de ser mediante o qual a pessoa sai de si e se centra no outro com desvelo e solicitude.1

O resultado é uma entrega muito heterogênea do que é chamado saúde por parte dos Estados para os seus cidadãos e nem sempre se atenta às suas necessidades. Entre essas necessidades não atendidas a contento, está a de alívio do sofrimento associado a doenças crônicas, progressivas e ameaçadoras da vida, em toda a sua trajetória, até o momento da morte.9

A temática a ser trabalhada sobre o óbito em domicílio provoca uma gama de inquietações sobre como se está cuidando dessas pessoas, na condição de paciente e/ou familiares, em uma fase do adoecimento tão delicada e com nuances quase que imperceptíveis.

Em destaque, de caráter provocativo e reflexivo, quando a palavra paciente e/ou família surgir, há de se compreender que são pessoas na condição de paciente e/ou família, com fundamento na contribuição de Leonardo Boff,1 em que a relação não é sujeito-objeto, mas sujeito-sujeito. Experimentam-se os seres como sujeitos, como valores, como símbolos que remetem a uma realidade fontal.

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