- Introdução
As abordagens cognitivo-comportamentais têm assistido, nas últimas duas décadas, a desenvolvimentos que colocam maior ênfase nos processos (e não tanto no conteúdo e forma da experiência interna) e nos modelos transdiagnósticos do sofrimento humano e da psicopatologia. Essas novas abordagens, conhecidas como terapias de terceira onda, pretendem alterar as funções dos eventos psicológicos problemáticos (mais do que alterar sua forma ou frequência) e, assim, auxiliar os indivíduos a se relacionarem com esses fenômenos de forma diferente.1
O objetivo principal dessas novas abordagens é aumentar o bem-estar psicológico e a qualidade de vida. Essas abordagens enfatizam o ato de estar no momento presente (mindfulness), a visão e a aceitação da experiência interna (pensamentos, sentimentos, memórias, sensações corporais) tal como ela é, os valores de vida e a compreensão dessa experiência à luz da história pessoal do indivíduo, em uma atitude de não julgamento, de empatia e de compaixão com o próprio sofrimento.1
Nesse registro, não há lugar para a reestruturação cognitiva de pensamentos ou esquemas disfuncionais. Mais importante é adquirir consciência do funcionamento e da natureza da mente, compreender que esse funcionamento deriva da interação de padrões evolucionariamente determinados e de experiências de vida, aceitá-lo como resultado de programas para lidar com o que é considerado ameaçador e desenvolver competências de atenção plena (mindfulness), aceitação e compaixão que permitam lidar eficazmente com esses programas.
As abordagens focadas na compaixão fazem parte das terapias de terceira onda e são definidas como abordagens integrativas derivadas da psicologia evolucionária e do desenvolvimento, de tradições humanistas, budistas e contemplativas e das neurociências, que contribuem para a compreensão da natureza e funcionamento neurocortical da mente.2,3
Mais concretamente, a terapia focada na compaixão (TFCterapia focada na compaixão)3 tem por objetivo estimular a aprendizagem de mecanismos e ferramentas de autorregulação por meio da ativação de circuitos cerebrais ligados ao sistema de tranquilização, promovendo uma relação interna pautada por sentimentos de bondade, aceitação, tolerância e não julgamento.
Em vez de chamar essa abordagem de terapia da compaixão, Gilbert preferiu designá-la de TFCterapia focada na compaixãos, por entender que o terapeuta pode colocar um enfoque na compaixão qualquer que seja a abordagem que pratique. Com base nesse pressuposto, a terapia de aceitação e compromisso (ACTterapia de aceitação e compromisso),4 outra terapia de terceira onda, começou já a considerar, explicitamente, a importância da (auto)compaixão em seu próprio modelo e contexto.5
Ao longo deste artigo, serão abordados os aspetos nucleares da TFCterapia focada na compaixão, tanto em termos de sua teoria de base, com atenção especial para o modelo evolucionário da mente humana, a teoria das mentalidades sociais, sistemas de regulação do afeto, diferentes formas e funções da relação interna (autocrítica e autocompaixão), como em termos de seu processo terapêutico, nomeadamente, a formulação de caso e as estratégias de intervenção.
- Objetivos
Ao final da leitura deste artigo, o leitor será capaz de
- reconhecer o contexto da emergência da TFCterapia focada na compaixão e do treino da mente compassiva (TMCtreino da mente compassiva);
- descrever o modelo evolucionário e suas implicações para a psicopatologia;
- compreender o sistema tripartido de regulação de afeto, articulando com a análise funcional da emoção, natureza e funcionamento da mente;
- explorar duas formas de relação eu–eu: autocrítica e autocompaixão;
- reconhecer e conceitualizar as dificuldades emocionais do paciente à luz dos três sistemas de regulação de afeto;
- identificar os diferentes processos inerentes à TFCterapia focada na compaixão, incluindo a relação terapêutica, a psicoeducação e o TMCtreino da mente compassiva;
- reconhecer as práticas e exercícios nucleares do TMCtreino da mente compassiva interligados em um sentido de identidade compassivo.
- Esquema conceitual