Objetivos
Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de
- identificar as características farmacocinéticas e farmacodinâmicas peculiares ao idoso, que aumentam sua suscetibilidade a efeitos adversos medicamentosos;
- empregar estratégias de prescrição segura para idosos;
- utilizar estratégias de desprescrição de medicamentos.
Esquema conceitual
Introdução
Um dos aforismos hipocráticos mais conhecidos, considerado um dos pilares da prática médica, é o princípio da não maleficência, primum non nocere, isto é, primeiro, não prejudicar. A violação desse princípio, mesmo que de modo não intencional, é o que se chama de iatrogenia, e aquelas violações decorrentes do uso de medicamentos estão entre as mais frequentes na população idosa.1
Diferentes estudos têm demonstrado, há décadas, que os indivíduos idosos são grandes usuários de medicamentos em praticamente todo o mundo. A desproporção representada pelo consumo medicamentoso entre os idosos é de tal ordem que, embora não correspondam nem a 15% da população mundial, os idosos são os destinatários de cerca de metade de todas as prescrições de fármacos.2
Há diversas razões para esse fenômeno, como a maior carga de morbidade desse grupo etário em comparação aos mais jovens, a fragmentação da medicina em múltiplas especialidades, o emprego da prescrição de fármacos como principal tratamento para a maior parte dos sintomas e doenças, além de hábitos como a automedicação, que pode ser praticada usando-se tanto produtos industrializados como naturais.3,4
O reconhecimento da automedicação durante a anamnese médica pode ser um grande desafio, pois ela também inclui produtos cujos usuários não costumam identificá-los como medicamentos, como polivitamínicos e substâncias comercializadas como suplementos nutricionais. Outros fármacos que costumam ser omitidos são aqueles de uso eventual, para controle de sintomas pontuais (analgésicos, laxantes, sedativos, anti-inflamatórios, antivertiginosos, entre outros), mas que, mesmo não sendo de uso diário, não podem ser confundidos como isentos de riscos.3,4
A utilização de substâncias extraídas da natureza para fins medicinais é tão antiga quanto a própria humanidade, e muitos idosos são usuários de substâncias oriundas das práticas médicas tradicionais de suas famílias, culturas e locais de origem, como fitoterápicos, chás, ervas, entre outros. Muitos desses produtos foram escassamente estudados segundo parâmetros científicos e tampouco costumam ter formas padronizadas de produção, purificação e titulação.4,5
Como muitos dos idosos usuários dessas substâncias omitem esses hábitos de seus médicos, isso também contribui para o aumento dos riscos de problemas relacionados ao emprego de fármacos nesse grupo etário.4,5
O uso excessivo e nocivo de medicamentos pela população idosa assume uma importância tão relevante na geriatria que a iatrogenia é incluída na lista das síndromes geriátricas clássicas, e a iatrogenia medicamentosa é sua versão mais corriqueira. Nessa mesma seara, outro conceito associado é o de polifarmácia.6
A definição mais atualizada e aceita de polifarmácia é a do uso simultâneo de cinco ou mais medicamentos diferentes e apresenta relação com eventos adversos.6
Além do elevado consumo farmacológico pelos idosos, é preciso considerar também que o envelhecimento modifica certas características dos processos farmacocinéticos e farmacodinâmicos, aumentando a vulnerabilidade dos idosos aos efeitos adversos, a interações medicamentosas e a riscos do uso de substâncias potencialmente inapropriadas.6
No lado oposto ao da prescrição exagerada, porém tão perigosa quanto ela, encontra-se a subprescrição de medicamentos necessários e com benefícios comprovados. Trata-se da situação em que o médico subestima os benefícios de certos medicamentos (ou superestima seus efeitos adversos) e deixa de prescrevê-los, privando de seus efeitos o paciente que teria indicação de usá-los, o que pode acarretar pior controle de suas doenças, redução de sua qualidade de vida e até redução da expectativa de sobrevida.6
Uma das muitas razões que aumentam a complexidade do uso de medicamentos por pacientes idosos é a heterogeneidade desse grupo populacional. Não há nenhuma faixa etária tão diversa quanto a dos indivíduos maiores de 60 anos, o que faz o perfil de resposta ao mesmo fármaco ser amplamente diferente em pessoas idosas da mesma idade, mas que possuam distintos status, nutricional, cognitivo, funcional, de composição corporal, de fragilidade, além da própria sensibilidade individual ao fármaco.4,6
Por essa razão, a avaliação geriátrica ampla é recomendada como instrumento semiológico necessário para identificar essas características do paciente idoso, pois revela informações mais objetivas e importantes do que a idade, por si, representa.4,6
As tentativas de racionalizar a prescrição de medicamentos a idosos têm sido feitas de modo a reduzir o uso desnecessário de fármacos, especialmente aqueles associados a maior risco de efeitos adversos e de interações com outras substâncias. As contribuições de reconhecida importância nessa área são as seguintes:7–9
- estudos como os critérios de Beers sobre medicamentos potencialmente inapropriados para uso em idosos;
- estratégias para prescrição e desprescrição segura de medicamentos, como Screening Tool for Older Person’s Perscriptions (STOPP) e Screening Tool to Alert doctors to the Right Treatment (START);
- guias de interações medicamentosas;
- aumento da representatividade de faixas etárias mais avançadas nas pesquisas para desenvolvimento de novos fármacos.